Muito cedo me disseram para duvidar de tudo e nunca deixar de pensar e questionar. Isso fez de mim uma menininha chata, cheia de perguntas. Já mais velha, saindo da adolescência, descobri um tal de “senso crítico” – ouvi não sei onde e fui atrás do significado. Nunca mais deixei de usá-lo.
Eu tinha entre quatro e cinco anos quando a minha avó materna faleceu, tenho dela uma única lembrança, como uma fotografia antiga que vai desbotando. Ficou o meu avô com minhas três tias. Na casa de meu avô havia um santuário enorme, em madeira, com uma impressionante imagem de São Sebastião crivado de espadas, muitas santas, um insuportável cheiro de parafina das velas queimadas, e uma gaveta onde havia terços, assustadores véus pretos, alguns com detalhes roxos, e um livrinho com a imagem da volta de Jesus a terra. Com o tempo fui me acostumando com aquilo, e acho que já entrava no quarto do santuário para brincar de ter medo. Pegava aquele livrinho, tentava adivinhar as palavras, e ficava olhando os detalhes da volta de Jesus: a imagem do fim do mundo. E ia entendendo mais ou menos que, Jesus voltando iria escolher os eleitos ao reino dos céus. Não lembro bem se alguém me falava dessas coisas, ou se foi o que consegui desvendar no tal livrinho. Aquilo me encasquetava e tinha muita semelhança com o espetáculo do mágico dos circos que passavam pela cidade. Mas, aí me diziam – isso, sim, me diziam, que Jesus gostava das crianças e que delas era o reino dos céus, assim me tranquilizei: o meu lugar no reino estava garantido.
Me agradava um quadro na parede ao lado do santuário, com um Jesus que não era loiro dos olhos azuis, mas era moreno de cabelos pretos, longos, encaracolados. Juntava-se a essa imagem o fato que sendo meu avô paterno palestino, diziam, minhas tias e avó, que Jesus era nosso primo. Bastava: o reino dos céus de portas abertas e ser prima de Jesus. Porém, na imagem Jesus estava sentado sobre uma pedra, em uma montanha quase deserta, não estivesse cercado por carneiros pastando, sob um céu azul muito escuro, em uma meditação infinita, e me ocorria pensar que aquilo ali era o tal céu. Logo me dava uma aflição e um profundo desejo de declinar das honrarias a mim destinadas. Fugia para o reino do quintal com suas árvores frutíferas, suas cores e a companhia de meu avô – isso é que era um céu que se apresente. Com o tempo entendi que o quintal era, sim, bonito, como tantos quintais, mas era o amor de meu avô, o amor verdadeiro, que tornava aquele lugar o meu céu.
Com oito anos, estava às vésperas de fazer a primeira comunhão, minha mãe já havia bordado a gola do vestidinho branco que eu deveria usar ao entrar na igreja segurando uma vela. Ao meu redor havia um clima de quase festa, estava a se cumprir um ritual que me salvaria de todos os males da terra. Só minha mãe estava um pouco indiferente aquilo tudo, ela não tinha religião e era profundamente espiritualizada. Tomei coragem para dizer “mãe, eu não quero ir”, e o amor dela por mim, traduzido em respeito, me liberou para a minha escolha. Para desespero das tias, naquele dia, na hora em que deveria entrar na igreja eu estava livre, brincando no quintal. O amor de minha mãe me dava a força de todas as divindades. Mesmo criança, eu sabia que ela gastou o que não podia na confecção do vestido, nos sapatos e em tudo mais. Mas, o mais importante foi me dar o direito de escolher. Um amor que por ser imenso ainda vive e me sustenta.
Depois, como qualquer pessoa, segui procurando respostas para o estar nesse mundo. Busquei religiões, todas elas. Algumas não me deram resposta nenhuma, de outras tirei ensinamentos. Fui costurando minha filosofia de vida como se fosse uma customização do que passou pelo tal do senso crítico e do que me tocou a alma: a roupa de minhas crenças que me agasalha nesse mundo sem reino nenhum. Expulsa de todos os paraísos, me vi a criança abraçada por forças a que não dou nomes, mas chamo de forças divinas. Meu coração é o quintal de meu avô, onde o sol clareia as manhãs quando o amor está em minha vida e escurece no desamor, dos medos, da insegurança, na descrença no ser humano: meus semelhantes tão dessemelhantes na maioria das vezes.
Começo a envelhecer e Jesus não voltou para acabar o mundo. Aqui continuamos no planeta em que talvez os dinossauros tivessem aproveitado melhor a vida. O céu e o inferno, como sempre foi, estão colados um bem perto do outro, separados por paredes imaginárias. Ora estamos de um lado, ora do outro.
Não sei o que foi feito do São Sebastião com suas flechas crivadas no corpo e nem do Jesus em sua meditação nas montanhas. Às vezes medito também, entre outras pedras, em meio a outros desertos e desgarrada de rebanhos. O Cristianismo me ensinou coisas importantes, o Bhagavad Gita também, o Santo Daime me deu momentos de expansão da consciência e lucidez, nos terreiros minha alma quis arrastar meu corpo para o batuque que ecoa no coração, mas não fui, o Espiritismo me traz momentos de paz e sabedoria, Karl Marx me convenceu de que “a religião é o ópio do povo”, e as mesas de bar e de cafés me ensinaram sobre comunhão. Sou uma pessoa espiritualizada que acredita no amor, embora todos os dias me tragam motivos para não acreditar. E acreditar no amor não tem nada de angelical ou de pureza. Eu falo do amor de que ainda sou aprendiz, que é feito de fogo e ar e não de palavras.
Jesus não veio acabar o mundo, fazer o julgamento final. Dizem (e já disseram mil vezes, há décadas) que agora virão os extraterrestres, e desses nem tenho livrinho para adivinhar como será a cena, no momento da grande explosão – será que vai ser uma explosão? O mundo vai acabar e ainda nem comprei agenda para anotar a data. Não sei se um desses seres virá para me levar em sua nave de luz. Provavelmente não serei escolhida: eu um ser falho, cheia de defeitos, um ser tão comum e que me reconheço uma partícula ínfima de poeira no universo, se muito. E talvez nem dê tempo de saber se por acaso irei e nem de ficar aqui embaixo crepitando no fogo e vendo subir aos céus dos ETs os escolhidos, talvez entre ais, repetindo nomes dos que vão subindo à nave de luz, talvez até protestan-do “ei, mas esse aí votou naquele Coisa!” – vai saber se não será possível comprar passagem caríssi-ma, não é? Talvez eu me vá sei lá para onde antes desse dia. E aqui está uma boa questão: quem mor-rer antes desse processo seletivo, vai para onde? Uma sala de espera? Por Deuses e ETs, não é possí-vel haver salas de espera em outros mundos, ainda mais se for daquelas com senhas e painéis.
Se o mundo não acabar, e nem eu, ainda vou terminar essa crônica de fim de mundo. Por enquanto vou por aqui, procurando uma sombra, sob esse sol que parece dizer que o fim está ao meio de seu percurso. Vou assoviando Assis Valente, sabe quem é? Aquele que compôs aquele sambinha que foi sucesso na voz de Carmem Miranda. Sabe quem é Carmem Miranda não, não é? Aquela do turbante e balangandãs. Tá ligado? Ah, deixa pra lá, que isso é outra parte à parte dos tantos fins de mundo.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)