Não havia propriamente uma mesa. Éramos quatro, dispostos em um semicírculo, em simpáticas poltronas, lembrando pequenos tronos, para debatermos sobre a notícia jornalística como matéria sensível da democracia, coordenados pela competência da presidente da Empresa Paraibana de Comunicação, Naná Garcez.
E de saída temos que reconhecer a ousadia dos organizadores do Festival Internacional de Literatura da Paraíba: Compor uma mesa, num festival pleno depoéticas, encantamentos, estrelas literárias, um debate sobre um tema ao mesmo tempo tão complexo, tão duro, tão urgente.
Falar sobre democracia e jornalismo na histórica e bela igreja de São Francisco, uma casa em reconstrução, tem um halo simbólico difícil de descrever. A imponência da capela, o eco das nossas vozes, o silêncio da reduzida plateia, como que sussurrava alguma coisa, para uma sociedade plantada no presente, inebriada pelo progresso tecnológico, pelo perpétuo divertimento das mídias, incapaz de fazer o gesto da escuta das vozes ancestrais, incapaz de reconhecer a inteligência dos povos originários, fascinada pelos usos imediatistas da “inteligência artificial”.
E havia um segundo desafio: Teríamos que falar após a concorrida mesa sobre literatura e poesia, um debate que reuniu nomes como Bráulio Tavares, Itamar vieira Júnior e a poetisa oficial de São José do Egito. Confesso que senti inveja, confesso que eu desejaria estar naquela mesa. Isto porque eu não entregaria à plateia, palavras alegres, frases bonitas de si dizer, mas antes, entregaria palavras feitas de urgência à antiga capela.
Me escutei falando, e pensei que houvesse me transmudado num padre velho, fazendo seu sermão de sexta-feira, a denunciar um jornalismo de superfície, esvaziado das pluralidades da cultura, a sofrer por uma democracia frágil, fraturada por um modelo civilizatório fundado na ganância, na submissão da natureza até as últimas consequências, em adoração ao deus do mercado de consumo e do lucro.
E porque nossas ideias não são somente nossas, mas, como diria Bakhtin, alimentam-se de todo um auditório social que nos assiste de dentro de nós mesmos, mobilizei Serge Latouche, com sua lúcida obra sobre o modelo civilizatório atual e a ocidentalização do mundo onde a sociedade celebra a raça branca, a religião cristã, o modelo econômico capitalista, empurrando para a invisibilidade da cultura, tudo aquilo que não se enquadra nessa moldura civilizatória.
Convoquei Bruno Latour para falar da era do antropoceno, onde os sujeitos humanos, inspirados na ideologia do progresso, mudaram o Dna do planeta, empurrando as espécies vivas para a crise climática sem precedentes, para as crueldades perpetradas pelos desenvolvimentos bélicos, pela contaminação de rios e oceanos, a devastação das florestas, a subjugação dos povos aos processos de colonização, apagando a ideia de um futuro pacífico e justo.
E, , com a filosofia de Vladmir Safatle, disse, na minha voz aflita de padre velho, que não havia como fazer uma fala amena, uma fala alegre, porque o único acontecimento da atualidade é a crise planetária.
E do meu auditório social, Vladmir Safatle veio iluminar aquela minha trilha tortuosa. Estou lendo o seu livro O Alfabeto das Colisões, onde ele faz uma aguda reflexão sobre a filosofia, sobre arte e psicanálise. Logo no princípio da obra ele conta sobre uma casa que o filósofo Ludvig Wttgenstein construiu lá para a sua irmã. Se Adhorno, na sua obra Minima Moralia, estava preocupado com portas que eram construídas para conformar os corpos da classe trabalhadora ao sistema industrial moderno,
A casa de Wttgenstein queria falar com os corpos. Queria abrir-se para deixar entrar-se lá dentro, queria ser um lar. As maçanetas. Elas eram o primeiro convite para se adentrar à casa de wingestein.
Aquela metáfora como que me emprestou um archote, para que eu pudesse caminhar em busca de fiéis que conjugassem alguma esperança para o jornalismo, para a democracia, a sociedade. Esperança, a palavra que também habitou a fala do companheiro de debate Jorge Panzera.
Safatle como que me entregou uma espécie de chave, uma pequena fresta para alguma saída, conforme pedira Amanda Lima, quando explorou em sua fala, uma sociedade ameaçada pela falta de credibilidade para o trabalho jornalístico, pelos jornalistas atacados permanentemente por uma sociedade afetada pelo negacionismo.
Sim, meu caro Fernando Mattar, companheiro na quele debate. O fazer jornalístico é difícil na atualidade. Os profissionais, entrincheirados sob a luz dos holofotes, ancorados na potência dos microfones, do espocar dos flashs, são compelidos, pela força dos anunciantes, pelas máquinas registradoras dos comerciais, pela superficialidade das audiências, a mimetizar-se nas redes sociais, buscando os cliques, as curtidas.
O que é notícia? Esse pequeno artefato logotécnico, essa pequena pílula de informação, antes de chegar à audiência, é uma escolha feita de muitas camadas, na maioria das vezes, fraturando a já tão frágil democracia, passando ao largo das singularidades da realidade, criando um mundo editado que pode transitar tranquilamente pelos múltiplos assuntos do dia, como se fora uma conversa amena enquanto a violência feroz estruge lá fora.
A notícia, esse pequeno disparo informativo, dependendo do enquadramento, da repetição, da reverberação na audiência, pode crescer como um tsunami, pode esclarecer ou pode desinformar… Que tragédia!
E deixo aqui mais coisas que eu disse e que eu não disse lá. O jornalismo, no seu ideário clássico, recebeu, das instituições sociais, a outorga para ser o vigia da sociedade, da democracia; surgiu para ser o porta-voz dos vulneráveis, dos sem cidadania, daqueles cuja fortuna é habitar um mundo desigual e resistir.
O jornalismo é uma profissão da escuta do outro. Mas, as longas perguntas dos profissionais, disciplinando o caminho da fala, direcionando a voz do outro para a linha editorial da empresa, fazendo cortes cirúrgicos em falas que não podem aparecer na tv, escutando em geral somente aqueles que confirmarão o enquadramento, esse jornalismo sepulta todos os dias a possibilidade de cumprimento do seu ideário clássico.
Esse jornalismo perde todos os dias, a possibilidade de escutar a dor do outro, de flagrar, em cada átimo do seu ser, a natureza que pede socorro, o estranho cheiro do medo que infesta a vida das periferias, o alerta das árvores derrubadas, a estalarem na queda, as últimas sílabas do silêncio perpétuo.
Sim, as portas externas do jornalismo estão fechadas para a diversidade, para o pluralismo, para a coragem. E, como aconselha Safatle para a filosofia, o jornalismo também precisa abrir suas portas internas, rever a casa de onde intenta narrar o mundo. Precisa rever-se por dentro. Precisa conhecer sua potência e aquilo que hoje conforma suas impossibilidades. Há que haver um tempo para o desligar do conversar ameno, nos microfones de rádio e tv. Há que haver um tempo para o pensar coletivo, para a raiva, para o revoltar-se, para o perguntar-se: que planeta eu habito? A quem ou ao quê sirvo eu.
E eis que encerro minha preleção, à espera da hóstia da verdadeira comunhão, que não é senão a comunicação, no seu ato de escutar, debater e transformar.
Ao Festival Internacional da Paraíba, deixo minhas congratulações pela ousadia, e minha gratidão por acolherem minha fala na diversidade e riqueza dos debates ali realizados.

Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.