Não sei se é o tempo, não sei se é a idade, os cabelos brancos que prenunciam o fim de mim, mas o fato é que tenho vivido dias de melancolia e de lembrança um tanto saudosista de amigos, de lugares, de um mundo de coisas que vivi e que fiz, e que ao seu tempo nem foram assim tão felizes, mas coisas que são como mosaicos na minha memória afetiva e que compõem um painel em que eu me contemplo a mim e ao meu tempo. Coisas que me fazem ser, quase que à revelia, um memorialista de mim mesmo.

Esse sentimento de melancolia um tanto oblíquo atravessa o novo filme de Kleber Mendonça, Retratos Fantasmas, e então eu me dou conta de que além de mim outros vivem curtindo essa mesma coisa que não é dor, não é angústia, não é sofrimento, e que talvez seja tão unicamente o contemplar apenas de sua própria história.

Ao assistir ao filme de Kleber Mendonça fui criando dentro de mim um filme paralelo, no qual a minha casa na chã do Oitizeiro apareceu, e apareceram os cinemas em Cruz das Armas, os amigos que vi citados no filme, e até mesmo imagens de Recife e de lugares daquela cidade que me foram tão conhecidos, como a Livro 7, a Avenida Conde da Boa Vista, e um solitário e silente fantasma de preto, um vampiro atravessando pontes da velha recifilis, como Jomard Muniz de Brito costumava chamar a sua cidade, ou a variação algo retórica e mundana, a venérea brasileira.

O fantasma esvoaçante é uma rara imagem de Antonio Cadengue representando num filme super-8, de Jomard Muniz de Brito, mestre nessa bitola caseira, com quem eu mesmo pude fazer o meu primeiro filme, Esperando João, e eu era um travesti numa cidade empedrada, quando eu tinha então cerca de 23 anos. Foi lindo ver Cadengue esvoaçante, quando há pouco tempo fez cinco anos de sua morte. Morre o homem, mas o cinema mantém viva a sua imagem.


O filme de Kleber Mendonça está dividido em três partes. Na primeira, o cineasta mostra a cidade a partir de suas próprias referências: a pracinha de Boa Viagem e a sua casa no Setúbal, próximo à pracinha, a sua rua de onde tantos filmes brotaram na imaginação do autor, como O Som ao Redor, o coroamento dessa fase, e as duas partes seguintes dedicadas aos cinemas do centro da cidade, nos quais o cineasta foi cultivando o seu amor à sétima arte, e o melancólico fim daquelas salas que foram virando igrejas evangélicas, portas fechadas com chaves de lágrimas, como disse o projetista de um dos cinemas, seu Alexandre.

Enquanto assistia a decadência dos cinemas do centro de Recife, fui lembrando dos cinemas que não mais existem em Cruz das Armas, onde eu ia assistir aos filmes na sessão dos miseráveis, como era chamada a sessão no cine Glória, na qual pagava-se para assistir a dois filmes pelo preço de um. O cine Glória é hoje uma inglória ruína encravada no centro da Avenida Cruz das Armas. Assim como também na mesma avenida, o cine Bela Vista. Mais adiante, em Jaguaribe, o cine Santo Antônio. No centro da cidade, Plaza, Rex e Municipal eram os cinemas que eu frequentava e que mereceram de Silvio Osias uma igualmente melancólica matéria, na qual o jornalista afirma: “No tempo dos cinemas de rua, a gente conhecia o exibidor, o gerente, o bilheteiro, o porteiro, o projecionista, o cara da lanterninha, o funcionário que trocava o letreiro no fim da noite, o fiscal de menores. Só quem frequentou sabe como era.” Esqueceu de dizer que também o padre Zé Coutinho era figura carimbada na porta dos cinemas: sentado em uma cadeira de rodas, com uma vara fina e comprida batia nas costas do cinéfilo que fingia não o ver para tentar escapar da inevitável esmola destinada aos pobres do seu instituto.

Sim, tudo isso são lembranças, nostalgia de velhos, saudosismo de um tempo no qual viver era um desafio de todas as horas, mas, ao mesmo tempo, a dinâmica da juventude ia moldando o homem e o artista. O cineasta Kleber Mendonça foi formado nos ambientes daquelas salas e casa hoje em ruínas. Retratos Fantasmas é um filme memória. Não lembro de ter assistido a outro filme documentário com essa característica de autorretrato. Falei isso para Kleber, que ao ouvir me pareceu estar procurando em sua mente algo semelhante. Um filme documentário, mas que não deixa de ao fim apresentar uma pequena e conclusiva cena ficcional, tendo o próprio Kleber como protagonista, quando ele entra no Uber dirigido pelo ator de todos os filmes de Kleber, Rubens. Aí já não é o Kleber Mendonça diretor, mas um insuspeitado ator que aparece assim, do nada, para realizar uma saborosa conversa com o motorista, que lhe diz ter o dom de desaparecer. E desaparece. Sem que antes o desconfiado Kleber coloque em si o cinto de segurança. O cinema está em todas as partes, como diz o cartaz do filme, que também é narrado por Kleber Mendonça. Assim como a poesia, no dizer de outro brilhante pernambucano, o poeta Manuel Bandeira. Assim como a arte. Assim como a vida.