Para o poeta mexicano Octávio Paz, “poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono” e “a atividade poética é revolucionária por natureza”. Lembrei logo dealguns dos seus escritos no livro O Arco e a Lira quando li Mulheridades (Editora Xará-2024). Tudo isso numa viagem tão breve quanto densa entre Campina Grande para João Pessoa semana passada.
Eis o segundo livro de Iviny, autora natural de Campina Grande, onde vive e escreve. Já havia lido “Orgasmos da Alma” (2019), seu livro de estreia. Gostei percebê-la no moinho criativo apontado pelo poeta mexicano. O livro nasceu num reordenamento de conceitos, vômitos e orgasmos. Frutos de um mergulho acadêmico no mestrado do Programa da Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG.
Gostei de perceber o quanto Iviny traz para as páginas de Mulheridades algumas questões que deverão impulsionar sua pesquisa sobre a escrita criativa de autoria feminina. Mais ainda pela forma como ela provoca leitores e leitoras. Por exemplo quando pergunta “Qual o gosto o amor na tua boca?”. Para fechar a provocação ela abre espaço para a resposta. A pergunta lembrou um pouco outra poeta paraibana, uma linda jovem de outra geração. “Quanto mais choro/ mais passo batom”, disse Vitória Lima.
Neste segundo livro a poeta paraibana parece afirmar uma poesia que já se destacava pelo erotismo. Não como fator de pulsação do corpo, mas enquanto valor humano. Pela sensibilidade da escrita e pela forte pegada quase performática a autora parece caminhar para a consolidação de uma escrita contundente, mas sem a soberba natural da juventude. Ela nos desafia para uma leitura imediata e compartilhada. Ao tempo em que fala de si, fala de outras mulheres.
Sobre o livro anterior, escrevi que “Iviny nos convida para lambuzar as abstrações da alma na busca da sua poesia enos chama para uma leitura sem pudores nem poderes”. Em Mulheridades ela também nos convida a descobrir uma poesia que se derrama entre a suavidade e a volúpia de existir. As turbulências de uma escrita fêmea se revelam diante de outra forma de escrita. Onde a demanda exige o rigor acadêmico, mas também exige análise sobre os torniquetes da criação.
Cada vez mais sinto que Iviny fortalece uma voz poética que se impõe pelas escolhas – ou apesar das escolhas –conforme o ângulo da alça de mira e conforme o gatilho do olhar. A linguagem poética em Iviny parece acompanhar seus passos na vida. Ela sabe escolher seus confrontos e, mesmo lanhada, avança numa afirmação permanente do seu arsenal de possibilidades. Arranca da sua destribalização permanente o que reconhece nas tempestades do silêncio.
Do seu jeito, na sua forma de elaborar o verso, arranca daspulsações poéticas a sua força de existir. Revela-se –enquanto sua poesia fortalece as asas – num convite para um voo compartilhado. O livro nasceu como um diário de bordo da pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG. Tece a metalurgia da sua voz poética com a mesma autonomia de quem investiga a escrita criativa na autoria feminina. Ou seja: ela já reconhece seu rosto no espelho de outras mulheres – com ou sem as ferramentas da literatura.
No posfácio, sua orientadora, Professora Doutora Tassia Tavares é muito precisa: “Mulheridades surge. Tá no mundo. Essa escrita que tem a forma de lâmina e rasga entre os dentes todas as maçãs, literárias, cristãs, pra se lambuzar”. Numa mestiçagem de saberes cristalinos ou insalubres ela sabe, assim como Judith Buther que “o corpo não é passivamente marcado com códigos culturais, como se fosse um recipiente sem vida de relações culturais sagradas e preconcebidas.
Numa belíssima edição da Editora Xará (sediada no município de Maricá-RJ) com capa e diagramação de Isabel /Fernandes e edição assinada por Letícia Fernandes Leal, Iviny encontrou a parceria capaz de proporcionar uma interpenetração de desejos, sonhos que não renunciam à aventura planejada de cada dia por onde a poesia se impõe como força motriz da sua existência.
Mulherdades é também o título de um poema que diz mais do que qualquer resenhista possa alcançar: “do rasgo escorre a sina,/ racha/ lambe/ tem que ser mulher/ do teu gosto, preta/ fiz um quebra cabeça/ do meu ser mulher”.Poemas lambuzados de motivos e uivos de uma loba desbravando desertos, longe da alcateia e seus cotidianosaguçados pela intuição.
Vejo em Iviny uma poeta em construção. Mas que poeta não está em construção? Ouvi do poeta Mário Quintana do alto dos seus oitenta anos, que era “um aprendiz de poeta”. Porque a poesia é essa pulsação, essa volúpia tão explícita nos versos de Iviny. Essa certeza de que cada livro é mais um passo da experimentação permanente que é escrever poemas. Trazendo suas leituras e seus questionamentos para o livro, Iviny nos convida para acompanhar sua caminhada.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.