Quando eu tive uma máquina de escrever para chamar de minha, não demorou muito e minha ex ficou. Quase disse um novo provérbio “vão-se as teclas, ficam-se as lembranças”. Brincadeira, claro. Por direito, ainda é minha a tal máquina, a transportadora que cuide disso qualquer dia. É uma Olivetti Lettera, um nome pomposo para um design redondo, de maleta. Sempre fui fã da portabilidade. Dito isto, vou dar espaço a esta crônica um apartezinho de como a mitologia dáctila entrou na minha vida.
Nos anos 90, creio eu, soube de uma escola de datilografia ali, na Praça do Bispo, na capela que encabeça um vértice do quarteirão. Não lembro o nome do curso, mas era todo metido mesmo na sacristia, uma salinha apertada de onde o eterno tlec-tlec contaminava o silêncio de cripta do lugar. Não falo isso em sentido figurado. Ao lado mesmo, na parece, estavam os jazigos, com suas datas cravadas no mármore. Era um olho no teclado, outro na finitude. Em entoava em forma de cântico fúnebre os Asdfgs como se não houvesse o amanhã. Aprendi por repetição, e até hoje me orgulho de pastorear todos os dedos para as teclas certas. Eles vão direitinho para cada letra sem precisar botar o olho.
Avanço no tempo. Meu pai tinha uma bem maior, uma Olivetti Linea 98, um equivalente robusto que até hoje funciona e de onde eu pilotei por muitos anos para cumprir a entrega de textos para um jornalzinho do interior. O som, para quem tem gosto dessas escritas, é quase uma canção de ninar – acalma porque sentimos que estamos produzindo algo, o som cadenciado terminando numa campainha.
Depois, veio o tempo do teclado, do notebook, do fazer silencioso – ou nem tanto, pois spotifies e youtube estão ao alcance via rede. Comprei a citada máquina através de um anúncio, e fui bater na porta da dona numa manhã chuvosa, pagando em espécie. A maleta verdinha nem pesava. Se pouco usei, não importa. Comprei de capricho, porque já considero um objeto de adoração, mas que pode, a qualquer momento, receber de volta um velho companheiro que sempre vai insistir nesta “tecla”.
É um gracejo, claro, mas não resisto: há uma mania de ressignificar coisas antigas como mais modernas que as atuais parainfernalhas. A máquina de escrever é in porque conjuga num só aparelho um processador de texto e uma impressora – e ainda acumula a função de objeto de decoração. Faz sentido. Raramente dá pau, não precisa de bateria e nem esquenta. Vida longa a essas parrudinhas do texto.
André Ricardo Aguiar
Nasceu em Itabaiana, Paraíba, é escritor, editor e autor de livros infantis.