Dos costumes ou hábitos que aprendi com o meu pai, um deles se tornou muito forte e presente: o prazer de ir à feira.
Eu que adorava passar as férias no sítio, subindo nos pés de manga e de jaca, colhendo cajus, goiabas, laranjas, jaboticabas; sentindo o cheiro inconfundível da comida preparada no fogão à lenha, admirando o estalar das brasas; ter os almoços de domingo embaixo do cajueiro – com direito à toalha de xadrez azul ou vermelho; assar castanhas na lata, no fogo feito no chão de terra. Dentro de casa, piso de cimento queimado e dona Teresa, uma mulher negra de cabelos longos e trançados ou presos num coque alto, saia comprida, dedos longos, mãos calejadas, poucos dentes, muitas histórias, risada alta, voz forte chamando as crianças que estavam no terreiro, pilando café no pilão de madeira. Um ritual do qual eu amava fazer parte. Ouço os sons, sinto os cheiros.
Varrer o terreiro com vassoura feita de “vassourinha-de-botão” e cabo de madeira esculpido por “seu Mané Tijoleiro”, esposo de dona Teresa; as brincadeiras de “barra-bandeira” e “baleado” com Cristina, Aparecida, “Dorinha” na frente de casa; os jogos de futebol no campinho feito pelo meu irmão; ver o gado ser vacinado por “seu Zé Branco” e sua filha France; comprar os ovos das galinhas cuidadas por dona Natália; admirar Miguel, Cristóvão e Climério a cavalo pastoreando o gado ou amansando touro brabo; a magia da casa de farinha de “seu Antônio de Nana”, o sabor do beiju quentinho feito na hora; as conversas com “seu Zé de Deinha”, sempre com um palito feito de capim, entre os dedos ou entre os lábios; ir pro barreiro acompanhar dona Lourdes lavar roupas e botá-las para quarar nas pedras; o tempero das galinhas de capoeira preparadas por ela e pelas meninas; ver dona Elizete arrumar as crianças para irem à missa no domingo de manhã; admirar Fátima, vaidosa, pintar as unhas de vermelho e estar sempre de touca nos longos cabelos negros; me encantar com os olhos azuis de “seu Severino” brilhando mais que os fogos estourando no céu nas noites de São João; encontrar os olhinhos verdes, radiantes, de dona Luzia, preparando pamonha e canjica, ou chorosos, por algum desapontamento ou tristeza que lhe apertava o peito; assar milho na fogueira; botar o caldeirão de milho para cozinhar e queimar a língua tomando o caldo quente, porque sentir aquele cheiro e aquele gosto não podiam esperar!
Ver Marcelo e Naldo, muitas vezes junto com meu pai e meu irmão, cavando lerões e preparando a terra para receber as sementes. Plantarmos juntos feijão, milho, amendoim, batata doce, macaxeira, laranja “mimo do céu”, “comum” e “Bahia”. Aprender o tempo da colheita; conhecer as ervas daninhas que cresciam em volta e limpá-las; aguardar a chuva, regar a plantação quando a chuva não vinha; sentir a terra nas mãos, saber a medida para não encharcá-la nem deixá-la seca; ver o milho “embonecar” e das espigas fazer bonecas para brincar.
Quantas vezes vi o riso e as lágrimas do meu pai, de prazer e alegria ou de tristeza, raiva e decepção porque o roçado não deu o que se esperava, porque a chuva não veio e faltou a água, porque o gado do vizinho furou a cerca, invadiu o roçado e comeu tudo; porque fomos roubados. Quantas vezes o ouvi dizer: “É a natureza! Próximo ano o inverno vai ser melhor!” Quantas vezes refizemos as cercas e até de tocaia ficamos!
Quantas Teresas, “Manés”, Severinos, Luzias, Fátimas, Marcelos, Aluísios, Aparecidas, Cristinas, Cristóvãos, Adrianos, Climérios, Naldos, Josés, Antônios, Frances, “Miguéis”, Lourdes, Elizetes, (re)encontro na feira? Quantos se perderam? Quantos deixaram a agricultura e a pecuária para “tentar a sorte” na construção civil no Rio de Janeiro? Quantos não estão mais aqui? Quantos estudaram e transformaram seus caminhos e destinos? Quantos transformaram a sua história a partir e através do amor pela terra e pelos animais?
Conhecer e conversar com as pessoas, voltar na semana seguinte e cumprimentá-las; ouvi-las dizer que já separou algo porque que está do jeito que você gosta é cultivar o afeto, é respeitar o trabalho do outro; é criar memórias, é aprender sobre o tempo e sobre os ciclos – da (nossa) natureza, da vida e das pessoas. É passar de geração para geração o cultivo, a cultura, o conhecimento, o sustento. É ir e voltar (no tempo), é mais do que simplesmente fazer compras, aprender a escolher as melhores coisas, é fazer laço.
Saber escolher a melhor laranja pela casca mais lisinha; o quiabo quebrando sua ponta; escolher a macaxeira quebrando a sua ponta e se ela estiver toda branquinha é porque é das boas, bem como se a casca soltar logo; balançar o abacate para saber se já está no ponto de comê-lo. Ah, são tantos saberes!
Saber de quem vai comprar a pimenta de cheiro, o limão, a manteiga e o queijo; o rapaz que vende o melhor feijão preto; a senhora que vende a fava fresquinha; a outra que debulha o feijão verde na hora; a barraca do coco ralado a sua escolha e que vai rechear tapioca ou virar leite para fazer o pirão de peixe; a barraca do doce “quebra-queixo”; o rapaz da carne de charque que assumiu o lugar do pai e me dizia: “dê lembranças ao seu pai!”
“Olha o inhame branquinho!”; “coentro e cebolinha só 3 reais!”; “laranja tá 10 reais a saca!”; “vai levar farinha hoje, freguesa?”
São tantas vozes, são tantos convites, são vários apelos. São tantas marcas (na face, na pele, na faca) e expressões. São tantos preços, são inúmeros valores. É sustento, é resistência, é vida pulsando, é movimento.
É o cachorro espreitando a carne no açougue, o gatinho que passa se enroscando nas minhas pernas e mia; a senhora que conta sobre a sua vida; a mesa de amigos em torno da tripa assada e da pinga; o senhor que corta os cabelos da criança enquanto a mãe escolhe as verduras; a moça que embeleza a outra fazendo suas sobrancelhas; o jovem que passa o jogo “anunciando a sorte” de alguém; a moto que passa entre as vielas; o carro de mão carregado com a feira de alguém, ajudando no sustento de quem lhe parece um “Zé Ninguém”. “Sai da frente que eu tô passando”, ele diz. Como se precisasse anunciar para ser visto. “Dá licença, dá licença”, o outro pede passagem, a vida também.
São tantas expressões, cores, cheiros, sabores, fartura, diversidades, disparidades. Eu me encanto entre as barracas, em conhecer frutas novas, experimentá-las, saboreá-las. Verde e maduro, doce e amargo, ácido e alcalino.
É a estrutura física que poderia ser melhorada, é o esgoto correndo a céu aberto, é a barraca bem organizada, uma que já está com quase tudo acabando, outra que ainda não vendeu quase nada. É começo, meio e fim!
É passado e presente que se encontram e se misturam. É memória vivificante e sendo criada. É ouvir histórias, fazer parte delas e construir a minha própria.
E você, já foi à feira?
Ah, tem algo mais que gostaria que vocês soubessem!
Escrevi a maior parte deste texto na noite do domingo de carnaval, dia 11 de fevereiro desse ano. Para alguns detalhes, consultei meus irmãos que me auxiliaram com algumas memórias, e tive o imenso prazer de ter uma das últimas boas e grandes conversas com o meu pai, trazendo mais elementos para esta escrita, relembrando muitas dessas histórias e pessoas, sorrindo e se emocionando, ouvindo-o já com a voz trêmula e deixando gravado – bendito celular – o que para mim soou como poesia – talvez a sua última: “O agricultor faz amizade com a terra. A hora que pode plantar e a hora que não pode. A hora que pode colher e a hora que não pode colher. Entendeu?” (20/02/2024, antes da sua última hospitalização).
Uma das melhores coisas sempre foi chegar da feira e lhe contar sobre tudo o que tinha visto e encontrado e lhe dizer que entendia o porquê dele gostar tanto; outra, foi ler para ele o que já tinha escrito, falar que era em sua homenagem e escutá-lo dizer: “Muito grato! Muito grato!”, com o seu olhar no meu e o nosso cumprimento de mãos!
Dedico ao meu pai, Aderaldo Moraes de Carvalho, que foi a principal fonte de inspiração, que me proporcionou uma infância e adolescência tão rica de saberes e valores, que despertou em mim o olhar para as pessoas e coisas simples, que me ensinou a apreciar e respeitar a natureza e o tempo de cada coisa, e que fez sua passagem em 22 de março.
Aninha Morais
Psicóloga amante da Psicanálise, servidora pública, praticante e professora de Yoga, apaixonada pela natureza, tem poesia inscrita na pele e trilha sonora pra vida. Adora celebrar com água de coco, vinho e gin. Encontra nos felinos, companhia, amor, sabedoria.