Fonte: imagens disponíveis na Comissão Nacional da Verdade
Arte: Valeska Asfora

O ano era 1975. Nessa época morava no Rio de Janeiro onde cursava Engenharia Elétrica e dividia com um amigo chamado Vicente, um pequeno apartamento localizado na Rua Evaristo da Veiga, esquina com a Rua Senador Dantas, bem no centro da Cidade Maravilhosa.

Naquele dia acordei com uma sensação estranha de que algo diferente estava para acontecer. Não sabia a razão, mas sentia uma incomoda ansiedade apertando minha alma e aguçando uma intuição que não conseguia decifrar.

Como de costume, o despertador tocou bem cedinho, e as 5:15 me levantei, tomei banho e me organizei para pegar o ônibus que me levaria à faculdade. Não havia nenhum motivo para “matar” a aula, mas por um momento pensei em desistir por não estar me sentindo bem.

Peguei o elevador e ao chegar ao térreo achei esquisito a presença de três homens conversando com o porteiro aquela hora da manhã. Não identifiquei como moradores, no entanto, como no prédio havia também algumas salas comerciais, lhes desejei bom dia, sem imaginar que ali estariam os informantes do meu itinerário. Obedecendo a rotina, tomei café na padaria ao lado, um ovo cozido, daqueles que vem com a casca pintada de cor-de-rosa, um pão com manteiga na chapa, e o tradicional pingado, me dirigindo em seguida para a Rua do Passeio, ponto de partida do meu destino.

Não caminhei além de 100mts quando fui surpreendido por uma viatura policial, que ao frear bruscamente já foi me dando voz de prisão. Ainda tentei explicar que era apenas um estudante, mas não me deram cabimento, me jogando no camburão onde lá já se encontravam dois detidos.

Ainda perplexo com a situação, naquele ambiente sombrio, fedido e quase sem ventilação, me pus a resmungar e falar mal daqueles policiais, quando de imediato um dos presos levantou o dedo indicador levando à boca em sinal de silêncio. Através de gesto me preveniu que tudo que se falava no camburão era escutado pelos policiais na cabine. Entendi e agradeci.

Durante aquele tenebroso percurso, em meu silêncio, comecei a refletir o motivo de minha prisão. Existia na Ditadura uma insatisfação generalizada provocada pela censura, falta de liberdade, onde até mesmo o direito de transitar, pensar, falar e escrever era proibido. As pessoas eram monitoradas e perseguidas, sendo alvos principais ativistas, militantes, artistas, jornalistas, estudantes e todos que faziam oposição ao regime. Vivíamos em total insegurança onde pessoas eram desaparecidas, presas, mortas ou torturadas nos porões de quartéis e delegacias, quando não eram exiladas. A resistência tomou conta das ruas gerando uma reação coletiva até mesmo em quem não militava politicamente. Em alguns momentos participei destes atos, porém a última manifestação teria sido realizada três dias antes de minha prisão, nas escadarias do Teatro Municipal, na Cinelândia, bem pertinho de onde morava.

O ato era um protesto pela morte do jornalista Vladimir Herzog, da TV Cultura, torturado e assassinado em 25 de outubro, com sinais de crueldade. Os militares ainda tentaram camuflar sua morte alegando suicídio, porém as marcas da tortura não conseguiram driblar a verdade omitida.

Na ocasião houve confronto entre policiais militares e manifestantes que só foi dispersado pela violência dos cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Por pouco não fui atingido por uma delas e com medo corri para me abrigar em meu prédio.

Comecei a perceber que estava ali o motivo de minha prisão, porém como não era envolvido em partidos e nem militava organicamente em qualquer movimento, imaginei que seria apenas uma questão de averiguação para ser em seguida liberado. Me enganei!

Mal cheguei a 15ª Delegacia, na Tijuca, fui logo sendo levado para uma sala onde se encontrava um moreno alto, com os dentes trincados e cheio de “tiques” nervosos na boca, como se estivesse mascando um chiclete invisível. O delegado já foi dando um tapa na minha cara e aos gritos me chamava de “vagabundo”, “comunista”, “baderneiro” enquanto o outro me perguntava por nomes que até então não sabia existir. Os dois falavam ao mesmo tempo, como quisessem me induzir a alguma contradição. Foi longo o interrogatório, e quanto mais dizia não saber de nada, mais aumentava em seus olhares a fúria e a sede de me agredir. Após essa primeira tortura psicológica, inclusive com ameaças de morte, recolheram meus pertences e documentos, me conduzindo a uma minúscula cela que já abrigava seis detentos. Eles me perguntavam porque havia sido preso, e quando respondia não saber o motivo, começaram a zombar, provocar, ironizando com ameaças subliminares. Por um momento fiquei com medo de ser agredido por não revelar a eles o crime que não cometi, mas não demorou muito, se aquietaram e me deixaram em paz.

Algumas horas depois chegou um soldado trazendo nosso almoço, um angu sem misturas servido em um prato de zinco bem levinho e que ao me alimentar com as mãos, me transportei para a segunda infância quando gostava de fazer bolinhos de feijão na farinha, costume bem popular praticado por pessoas humildes no interior do Nordeste. Pouco tempo depois chega novamente aquele sujeito com seu cacoete ainda mais aguçado e me transferiu para uma cela solo. Em frente ao meu cárcere estavam detidas três travestis e logo que o sujeito saiu, as “meninas” fizeram comigo um verdadeiro carnaval. Me chamavam de “gostoso”, “tesão”, pedindo que mostrasse minhas partes, ao mesmo tempo que exibiam seus peitos, bundas, e se lambiam insinuando sexo oral. Esse foi um momento inusitado, que de certa forma me trouxe alguma descontração, porém não demorou mais que cinco minutos, quando novamente chegou o carcereiro, acompanhado de dois policiais e de imediato transferiu, de forma violenta, os travestis para outra cela, longe de meu campo de visão. Confesso que fiquei temeroso. Estava ali sozinho, entregue a própria sorte e sem nenhuma testemunha ocular que pelo menos inibisse algum mal que viesse a acontecer. O carcereiro e um dos soldados, entraram na cela, começando nova bateria de perguntas. Queriam saber a minha participação no movimento, quem era o líder, locais de encontros, quem era “fulano”, “beltrano” e “cicrano”. De fato não sabia absolutamente nada. Estava ali por um acidente de percurso, confundido por engano como parte de alguma organização. Eu era a própria música de Belchior “apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Um “paraíba” que por defender a liberdade acabou gradeado.

Como não conseguiram obter as informações desejadas, ordenaram que a partir daquele momento ficaria em pé e sem poder dormir. Essa talvez tenha sido uma das piores noites de toda minha vida. Nas primeiras horas aguentei firme, mas com o passar do tempo, mesmo estando escorado em uma parede, minhas costas começaram a doer, as pernas a fraquejar, e quando os olhos pelo sono queriam fechar, eram logo interrompidos por jatos d’água, seguidos de palavrões, gritos e gargalhadas. Falavam constantemente que se não abrisse o bico, iriam me matar.

Estava exausto, quando chegou acompanhado do delegado e seu ajudante, um militar fardado. Por conta da minha visão já turva e cansada, não consegui contar as estrelas de seu ombro, mas ouvi bem a frieza de como ordenou ao delegado que eu fosse transferido imediatamente para o 1° Batalhão da Polícia do Exército. Era nesse quartel que funcionava o DOI-CODI no Rio de Janeiro, onde presos eram torturados e muitas vezes assassinados, principalmente os militantes da luta armada. Por não existir naquele momento nenhuma viatura à disposição, ocupadas em outras operações,  o militar ordenou que eu fosse recambiado no dia seguinte, às 6h da manhã, impreterivelmente.

Enquanto eles traçavam os planos do meu destino, eu já sem forças chorava a minha morte pré-anunciada. Ainda em tom de gozação, comentou querer saber se aguentaria calado “a geladeira”, “a pimentinha” e o “pau-de-arara”, instrumentos de tortura usados na ditadura.

Não demorou muito, talvez um pouco mais de uma hora, quando o delegado chegou com um rapaz bem vestido, de boa aparência e que demonstrava certa tranquilidade para quem estava sendo preso. Ao abrir a grade falou “Fique aí com o comunista enquanto ele chega.” Tratava-se de um jovem da alta sociedade carioca que tinha se envolvido em uma briga. Provavelmente, ao se identificar, o delegado deve ter ligado para o seu pai vir resgatá-lo. Foi ele o meu anjo-da-guarda.

Contei a ele a minha história e o que estava por vir. Ele ficou sensibilizado e se propôs a ajudar, mas disse não poder fazer muito porque tinha alguma limitação familiar. Pedi então a ele que apenas comunicasse ao amigo Carlos Marques o local em que eu estava preso.

Carlinhos, amigo das antigas, estava morando no Rio de Janeiro com os tios. Sabia também que o irmão de sua tia era um general. Ainda pensei dar o telefone do amigo Vicente, mas sabia que ele não teria força suficiente para me tirar daquela situação. A partir dali comecei a repetir sucessivamente o número de Carlinhos. De cinco em cinco minutos pedia para o rapaz repetir o número 294-2354, até hoje cravado na memória. Ele me garantiu que faria isso por mim.

Eu tinha pouco tempo e sabia que a qualquer momento poderia ser transferido para o Quartel. Uma hora depois chega o delegado, mansinho, avisando que o pai do garoto tinha chegado. Saía dali a minha única esperança. Os vigias de meu sono e da minha posição continuaram humilhando e zombando da minha fragilidade. Não sei dimensionar o tempo. Talvez umas três ou quatro horas depois, me aparece o delegado ainda estupidamente agressivo, comunicando que seria liberado. Ainda assim pediu que ficasse de frente a ele, com as mãos para trás, para escutar o que ele pensava sobre mim. Completamente desequilibrado passou a me agredir e aos berros me chamava de “vadio”, “comunista”, “baderneiro”, “filho da puta”, e que a partir daquele momento meus passos seriam monitorados.

A minha alegria foi grande ao ver Carlinhos e Vicente na porta da Delegacia para me receber. Sou grato até hoje a ele, e ao seu tio general que por questões de auto-proteção pediu para não ser identificado. Esse foi o maior de meus livramentos, porém a história não parou por aqui.

Ninguém, a não ser Carlinhos e Vicente sabia que eu havia sido preso. Lembro que fui liberado no começo da noite e fui direto descansar. Além de traumatizado, estava exausto.

Para minha surpresa, no dia seguinte, ao final da tarde, chega o meu pai acompanhado de “Caneca”, amigo dele que foi buscá-lo no aeroporto. Me encontrou na cama, ainda com as pernas bambas e as costas doloridas pelo que tinha passado. Foi logo me perguntando “por que foi preso? O que anda aprontando? Onde está seu juízo?”

Seu “Caneca” ainda ficou por lá uns 20 minutos e depois pediu licença alegando um compromisso e foi embora. Fiquei surpreso e também perguntei como soube tão rapidamente da minha prisão. Ele não quis responder apenas informando que sabia desde o momento em que fui liberado. Com o tempo consegui desvendar esse quebra-cabeça.

Naquela época, fora os partidos chamados clandestinos, só existia a ARENA e o MDB. A minha família paterna sempre foi orientada politicamente por Argemiro de Figueiredo, republicano ligado ao Movimento Democrático Brasileiro, e primo legítimo do meu avô Pedro Ribeiro que, por sinal, era militante e fazia parte do Diretório Municipal do MDB em Campina Grande.

A situação mudou no entanto, quando o meu tio Enivaldo, irmão mais novo de meu pai, se elegeu deputado estadual pela Arena em 1974.

O elemento “sangue familiar” foi mais forte e a família passou a apoiar meu tio. A formação política de meu pai nunca permitiu que fosse radical e tampouco extremista, transitando bem em todos os segmentos, mas com essa aproximação, passou a conhecer e ter amizade com muitos militares. Provavelmente a informação de minha prisão tenha partido de alguma dessas amizades, já que na época do regime de exceção havia uma rede de informações aparelhadas onde eram cadastrados todos os “pseudos-comunistas”. A exposição dos acossados era tão absurda que tornou-se comum ver nas portas de cinemas e de alguns estabelecimentos, cartazes com os dizeres de “Procura-se” com fotos dos perseguidos, lembrando cenas de filmes de faroeste.

Ainda tentei arrancar de meu pai quem teria sido o informante da minha situação, mas como ele se resguardou, apenas respeitei. Naquela tarde passamos um bom tempo conversando e a noite fomos para o “Amarelinho” tomar um chopp e degustar o famoso frango à passarinho. Depois da terceira ou quarta tulipa, ele com a calma e a serenidade de sempre, olhou firme para mim e disse impositivamente: “Vou lhe fazer dois pedidos e gostaria que me atendesse. O primeiro é que você não comente esse episódio com absolutamente ninguém. Nem com sua mãe para não lhe aperrear, nem com seus irmãos, e nem mesmo com seu maior confidente, seja homem ou mulher. A segunda coisa é que você tranque a matrícula na faculdade e volte imediatamente para a Paraíba.”

Entendi aquilo como um recado de terceiros e o fato de manter um pacto sigiloso uma forma de preservar a nossa família. Meu pai sempre foi muito correto com as coisas, além de ser super honesto. Dizia sempre que a maior virtude de um homem é o caráter e seu comportamento perante a vida. Creio que naquela época, quando a ditadura estava em seu auge, ter um filho preso pelo regime militar e taxado de comunista, seria uma vergonha para toda a família, podendo inclusive respingar de alguma forma em meu tio deputado. Havia também o medo de que ficando no Rio de Janeiro eu poderia até ser morto.

Depois de um tempo passei a entender aquele pacto como uma forma de me preservar. Meu pai era sábio. Na época estava apenas com 19 anos e se fosse exposto por esse acontecido, certamente iria ser julgado, hostilizado e criminalizado pela hipocrisia da sociedade. Isso poderia somatizar ainda mais ao meu trauma e me prejudicar no futuro.

A minha fuga então foi compor uma música chamada “Solitária”, que a partir de 1977 passou a fazer parte do repertório do “Pó-Puêra”, grupo musical formado por mim, meu irmão Paulo Ricardo e o amigo Amauri Maia, onde só tocávamos obras autorais.

A Ditadura foi um período vergonhoso do Brasil. Além de cassar os direitos políticos de opositores e reprimir os movimentos sociais, através da violência dissiminou todos os tipos de preconceitos. Ela censurou, aprisionou, monitorou, torturou, matou, praticou abusos de vigilância, expurgou, transformou pessoas em desaparecidas, além de praticar todos os tipos de violações aos direitos humanos. Pior ainda é saber que o regime de exceção escolarizou o extremismo, o fascismo, o racismo, verdadeiros algozes da democracia. É necessário informar e conscientizar as gerações do perigo causado por esse sistema, ao mesmo tempo barrar os reacionários e aqueles que pelo poder almejado defendem a vil ditadura, sem conhecer as fraturas e as marcas de um torturado.

 

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Em 2013, trinta e oito anos depois, eleito vereador pelo Partido dos Trabalhadores, fui autor da Lei Ordinária n° 12.633, de 12 de agosto de 2013, que criou a Comissão Municipal da Verdade, atendendo aos companheiros que buscavam o resgate da memória da repressão, e uma forma de reparação das violências praticadas pela ditadura militar em nossa cidade.