Dores articulares, problemas posturais, falta de concentração, esquecimento, dificuldade no aprendizado, alterações de libido e disfunção erétil, obesidade, distúrbios alimentares vários incluindo ortorexia nervosa (preocupação excessiva com alimentação), disforia com o corpo, depressão, ansiedade, insônia, suicídio. Essa não é uma lista de efeitos colaterais retirada da bula de uma medicação, todos esses problemas de saúde vêm sendo associados ao uso abusivo/vício em redes sociais.
No início dos anos 2000 a gente desligava o computador e saía da internet, hoje a gente não sai mais, já viram o tempo diário de telas de vocês? O meu é assustador. Antes as redes sociais não tinham influenciadores digitais, nem padrão de beleza nem competição por número de seguidores, eram só depoimentos, comunidades para interação e jogos. Nessa época a gente vivia mais a vida real do que o online, a pandemia deixou bem claro que isso está se invertendo.
Durante a pandemia a minha bateria social do convívio pessoa-pessoa estava sendo usada minimamente e aí eu tive muita bateria social para comunicação online. Agora sinto que voltei a gastar a bateria pessoa-pessoa e estou sem tanta bateria para comunicação em rede social, mas mesmo isso sendo ótimo, percebi que meu tempo em tela não diminuiu, ou seja, uso menos a internet para interagir com outras pessoas, mas as redes sociais ainda me prendem muito.
Levar o celular para o banheiro, para a cama, para comer, muitas horas por dia no celular, poluição visual, crianças e adolescentes viciados em redes sociais, mães amamentando enquanto rolam o feed reduzindo o contato visual com seus bebês, prejudicando a construção de um vínculo que perdurará por toda a vida.
As redes sociais são um espaço de venda, uma loja de onde você não consegue sair e está o tempo inteiro sendo bombardeado por propagandas tão sutis que sequer percebe o poder de convencimento para te fazer comprar coisas, ideias, estilo de vidas inalcançáveis, as publis.
É possível voltar para a vida real?
Tenho sentido necessidade de falar sobre as redes sociais, sobre a minha relação com redes sociais e como isso tem me trazido inquietação. Por que a gente tem aceitado o bombardeio de conteúdos vazios, repetitivos, que não agregam em nada na nossa vida e só tiram nosso foco de coisas que a gente quer pensar ou deveria pensar ou precisa pensar? Por que estamos deixando desinfluenciadores ou influenciadores de nada nos influenciarem? Já que estamos presos às redes sociais, deveríamos fazer um uso mais crítico e racional do conteúdo que vamos consumir.
Essa não é uma crítica a conteúdos úteis, eu adoro conteúdos de relaxamento, como ASMR, por exemplo, e comédia, acho que tem criadores de conteúdo muito inteligentes e criativos que agregam muito na minha vida, como Bruna Louise (que fará show em João Pessoa dia 19/05/23 e Victor Camejo, que acabou de fazer).
Eu sei que para cada pessoa o conteúdo de relaxamento muda de foco, o de humor também, mas existem coisas aceitáveis e coisas inaceitáveis (que muitas vezes são crimes também) como xenofobia, racismo, machismo, preconceito, LGBTQIAP+ fobia, capacitismo… já chega de achar graça nesse tipo de coisa, não é engraçado. Não é engraçada piada machista (aquele humorista famoso aqui de João Pessoa que faz piadas com a mulher dele não é engraçado, suas piadas são em grande parte machistas e alimentam essa cultura do machismo que em muitos lugares se encontra com a cultura do estupro, inclusive). Piada de gordo não é engraçada. Obesidade é uma doença, não pode ser usada como instrumento para fazer alguém se odiar ou odiar seu corpo, é um assunto sério.
Piada de paraibano/nordestino não é engraçada, definitivamente. A gente já sabe que o Nordeste é o coração desse país e nós que salvamos o Brasil politicamente, quem não acha está errado e eu não estou abrindo espaço para discussão sobre isso.
Piada sobre mulheres trans, pessoas gays: definitivamente não é engraçada. Parem de dar biscoito para gente que faz isso, vamos racionalizar mais o tipo de conteúdo que a gente consome.
Um “conteúdo” que eu não entendo: vídeo de dancinha de umas pessoas que não estão fazendo nada com nada. É só uma pessoa dançando, muitas vezes dublando, exibindo partes do corpo repetidamente…. se você acha esse tipo de vídeo engraçado e se isso agrega algo de bom na sua vida, então ok, mas cuidado para não passar horas seguidas vendo isso, perder completamente o propósito de uso da rede social e virar apenas uma alienação, uma venda inconsciente de um estilo de vida com marcas de grife e padrão de beleza inalcançável que te fará se odiar (essa dica vale pra qualquer conteúdo, não só de dancinha). Ou será que o propósito da rede social hoje em dia é esse e eu que não entendi?
Aqui fiz um pequeno guia para uso mais racional das redes sociais:
O que um conteúdo NÃO pode/deveria ter:
(por uma questão de bom senso mesmo ou porque é crime)
– Gordofobia, necessidade de emagrecer que vai além da saúde, imposição de padrão estético, já está todo mundo muito cansado disso;
– Machismo: faz mulheres se sentirem mal sobre seus corpos e suas vidas de alguma forma;
– Ridiculariza qualquer pessoa da comunidade LGBTQIAP+ (quando você achar que não ridiculariza, pensa se essas falas fossem ditas contra você, se te machucar então é porque machuca outras pessoas também). Ridicularizar qualquer pessoa principalmente por alguma característica que seja inerente à sua existência, como seu gênero, por exemplo, é inaceitável (e pode ser crime também);
– Xenofobia: se ri, se humilha alguém pelo seu lugar de origem; (é crime)
– Vazio político: pessoas que dizem para você se preocupar apenas com o que é bom para você e esquecer o resto do país (lembram dessa influencer que deu esse conselho nas vésperas da eleição passada?): não dá. A gente já viveu experiências ruins traumatizantes suficientes nos últimos anos para entender o tanto que a discussão política é necessária. Não existe isso de não gostar de política, se você não gosta, alguém vai gostar por você e vai usurpar o seu direito de se posicionar sobre, mesmo que isso não seja algo consciente para você. Todos nós fazemos parte da política, não dá para se blindar, se isolar dessas discussões. Política não é chato, não é ruim, vamos desconstruir essa fobia política que as pessoas têm;
– Coach gratiluz da meritocracia que acha que apenas esforço faz você conseguir tudo na vida; que ignora a desigualdade social e racial do país; que incentiva cobranças excessivas e desconhece ou desconsidera doenças da saúde mental como burnout = fujam desse povo;
– Profissionais da área de saúde passando adiante informações sobre as quais não possuem capacidade técnica para, sem uso apropriado da assistência baseada em evidência, se passando por especialistas que não são, incentivando o uso de anabolizantes, chips da beleza e outras drogas que possuem efeitos colaterais graves e que já foram até proibidas de serem comercializadas com esses fins (aqui destaco médicos, nutricionistas, dermatologistas, dentistas…), fazendo propagandas de produtos diversos para o que já existe norma do conselho regulamentando que o profissional médico não pode fazer;
Esses dias estava vendo uma página de um rapaz hétero falando sobre as babaquices dos homens hétero reconhecendo e fazendo piada sobre, achei superlegal até que fui ver que ele estava vendendo uma mentoria para mulheres, com o intuito de ajudá-las. Ué, se o intuito é ajudar mulher, por que cobrar dinheiro delas então? Vai dar mentoria para homem ensinando a ser menos babaca, se quer ajudar mulher. O cara estava usando as merdas que os homens fazem para tirar dinheiro das mulheres com a premissa de que estaria ajudando-as… não passa de mais um hétero fazendo babaquice. A internet está cheia de ciladas. O tanto de mentoria que tenho visto de homem ensinando a outros homens como se comportar que mais parece um desfavor à humanidade me causa uma mistura de crise de riso com preocupação, é isso que vocês estão aprendendo na internet? Eca. Acho que os homens estão bem perdidos sobre como se comportar na vida, estou avaliando se eu mesma deveria abrir uma mentoria para vocês (risos).
O que um conteúdo PODE/DEVERIA ter:
– Incentivo ao respeito, empatia, tolerância de maneira geral;
– Valorização da mulher, do feminino;
– Defesa dos direitos humanos de maneira geral;
– Incentivo e valorização da ciência, da cultura e da educação;
– Piadas se sexo e política (acho engraçadíssimo e não vejo mal nenhum, desde que não ofendam nenhum grupo além dos bolsonaristas);
– Páginas que ensinam a gente sobre o universo LGBTQIAP+ (como respeitar, como usar pronomes, como abordar…). Nenhuma pessoa LGBTQIAP+ tem obrigação de ensinar isso e ninguém tem o direito de fazer perguntas constrangedoras com a desculpa de que está interessado em aprender. Quem queraprender vai consumir os conteúdos de quem ensina e não ridiculariza e invade ninguém na vida real;
– Conteúdos de pessoas indígenas que ensinam sobre a cultura e a preservação dos povos originários e suas terras. Vocês lembram que nosso país é uma terra indígena né? Então por que as pessoas valorizam tanto os perfis de pessoas brancas loiras de olho claro e as pessoas indígenas não estão com o mesmo alcance? Complexo do colonizado bateu forte, acordem!
– Conteúdos de pessoas negras. Racismo é coisa de branco, então a gente tem que resolver. Vamos dar alcance, voz às pessoas pretas que estão dando aulas gratuitas na internet sobre como combater o racismo no Brasil?
– Autoaceitação e amor–próprio. Da mesma forma que não podemos incentivar conteúdos gordofóbicos, não podemos também incentivar a romantização da obesidade. Uma coisa é amar seu corpo, se aceitar, outra coisa é entender que obesidade é doença e precisa ser tratada como tal;
– Conteúdos sobre preservação do meio ambiente, cultura do veganismo (mesmo que você não seja vegano, é um conteúdo interessante para reflexão), conexão com a natureza. Acho irônico usar redes sociais para tentar uma aproximação com o mundo verde, mas estamos presos nelas, não há saída, precisamos urgentemente aprender a lidar melhor com as redes sociais;
– Sobre conteúdos religiosos eu não vou falar nem que devemos evitar nem que devemos consumir, há muito o que ser repensado sobre religião, mas a sociedade não está pronta para essa conversa.
Precisamos refletir sobre os conteúdos que consumimos na internet, cada vídeo que a gente vê, cada like, cada comentário, tudo isso é um incentivo para aquele tipo de conteúdo. O algoritmo das plataformas calcula o tempo que você gasta em cada post, se você ficou mais segundos vendo um vídeo, aquele tipo de vídeo será mais mostrado a você, se você não tem consciência do que está incentivando, vai acabar passando pano e dando alcance para conteúdos problemáticos, muitas vezes criminosos. Vamos usar as redes sociais de forma mais consciente.
Convido vocês a reduzirem o tempo nas redes sociais que bombardeiam os cérebros de vocês com informações sem controle (vídeos infinitos e iguais, feedinfinito) e induzem a perda da noção do tempo, a perda do tempo útil na vida real e preferirem o uso consciente da internet, usando redes que colocam informações pontuais, que você pode usar só quando quiser e se quiser, pelo tempo que quiser, como esse diário, em uma tentativa de consumir menos internet, e de forma consciente e racional, e mais a vida real, no melhor estilo “se não pode vencê-la, junte-se a ela”.
e me sigam no @priscilawerton pra gente se alienar apenas com conteúdos legais.
Priscila Werton
Médica pela UFCG. Defensora do SUS. Feminista. Atualmente reside no Canadá cursando mestrado em Direitos Humanos. Instagram: @priscilawerton