“Se essa rua fosse minha…”, assim começa uma musiquinha antiga, que parando nesse primeiro verso bem poderia servir para anunciar uma pré-consciência cidadã – quem escreve faz dessas coisas de misturar um arremedo freudiano com questões da sociedade.
Vamos deixar de lado Freud e suas explicações do “trânsito” entre o inconsciente e a consciência, e também a musiquinha estilo “Poliana moça”, que fala em ladrilhar a rua com pedrinhas de brilhante para o seu amor passar, pois o que eu quero mesmo é contar da cidade que existe em minha imaginação. E que nada tem a ver com as “Cidades Invisíveis” de Calvino. Embora também seja uma cidade que já teve nomes femininos – Filipéia, Nossa Senhora das Neves.
Não me refiro à cidade inteira, porque a capital da Paraíba já se estendeu tanto para todos os lados e para cima, que não caberia em minha imaginação com seu trânsito caótico, sua poluição sonora, sua ânsia por uma “civilização” assim presa em aspas e subindo em concreto quase tocando o céu. Problemas esses que alguém argumentou “toda capital brasileira tem”. Pois bem, não quero falar nisso. Quero contar da cidade que imagino a partir da cidade em que vivo.
Em minha cabeça de aquariana imaginação não falta. E quem dera todo governante e todo gestor público também se permitisse a um pouco mais de imaginação, mesmo sendo de outro signo.
Se essa cidade fosse minha… E é! Pois sou uma cidadã que mora, vive e trabalha nela. Mas eu não mandava ladrilhar coisa nenhuma, muito menos com pedrinhas de brilhante – coisa brega, caríssima e que acabaria por ferir os pés do povo, dono das ruas. Na verdade, digo, na imaginação, eu não mandava era nada, que essa coisa de mandar não é muito comigo. Mas, tomaria conta com carinho do coração dessa cidade, de seu berço, de sua história, de sua alma – de seu Centro Histórico.
Há 25 anos vivendo por aqui – eu que vim da Serra encontrar o sol, costumo andar pelo centro da cidade como uma minúscula pessoinha que circula nas artérias de um coração. Sim, vou repetir: o Centro Histórico é o coração da cidade.
É preciso caminhar com cuidado por essas artérias, nelas existem perigos e fragilidades. E não, não é de hoje. São questões problemáticas que foram se agravando ao longo do tempo. Em 25 anos vi, muitas vezes, o coração da cidade tentar reagir, continuar batendo e logo sofrer uma ameaça de parar. Quando penso no Centro Histórico me vem as palavras abandono e resistência – não há um resumo melhor.
E diante do abandono, e da resistência, começo a imaginar se o Centro Histórico (que desde há muito escrevo com duas letras: o CH) fosse meu.
Antes de qualquer coisa eu deixaria de usar o termo “revitalizar”, pois embora seja o usual para os profissionais da Arquitetura, na prática por aqui soa hipócrita, e com um tanto de cinismo. Penso até que é um termo para ser reavaliado. No Centro Histórico já existem vidas, e são essas que foram colocadas no abandono e que se re-colocam na resistência.
Mas, deixemos de lado essas questões. Venha, vamos ao Centro Histórico sob a gestão de minha imaginação.
Vamos começar pelo Porto do Capim. Aqui é o Rio Sanhauá onde o sol se deita aos finais das tardes. É aqui a parte mais importante do coração da cidade. Prepare-se para ouvir as histórias de seus moradores mais antigos, e esteja pronto para a cordialidade dessas pessoas. Vamos ouvir as lendas, fazer um passeio de barco, ouvir como foi que ali permaneceram os cabeceiros – trabalhadores remanescentes do porto – que deixou de existir na década de 1930, como ali chegou a primeira família de pescadores e tantas outras riquezas que são parte de nossa História. Não podemos deixar de comer a deliciosa mariscada feita por aquelas mulheres admiráveis. O Porto do Capim, é uma comunidade onde as mulheres são fortalezas. Algumas lutaram por esse território e aqui permanecem, nesse lugar tão belo onde podemos fazer esse interessante passeio, que é denominado de “turismo comunitário”.
Daqui vamos subir a ladeira, sentindo o calor do sol, e ao chegarmos lá, vamos ficar deslumbrados com o conjunto do Largo da Igreja São Frei Pedro Gonçalves: as casas, o prédio do IAB o Hotel Globo, a Igreja. Olha, quanta gente! Aqui sempre tem atividades culturais, o Hotel é esse centro de cultura muito frequentado, a Igreja com suas portas abertas à visitação, onde podemos ver as ruínas históricas e não uma história em ruínas.
Vamos, venha comigo, vamos imaginar, digo, passear juntos: a Praça Antenor Navarro, com seus jardins floridos, como chegou a ser um dia, seus prédios coloridos e bem preservados, em todos eles funciona alguma coisa, são bares, restaurantes, lojas, espaços de cultura, oferecendo atividades à população e aos visitantes. Podemos descer a ladeira e visitar o casario. Sim, são muitas ladeiras, mas tudo cheirando tanto a vida, e tantas cores saltando aos nossos olhos que nem sentimos as pernas cansadas. Mas, há um trajeto em que podemos pegar o bondinho. Não, claro que não é o mesmo bonde das décadas de 1920/1930 quando a cidade era aqui. É, digamos, uma imitação, só para sentir o gostinho de como era antigamente. Vamos antes passar pela Estação Ferroviária, a Praça XIV, e de lá novamente ver o Porto do Capim – e a placa de sinalização do trem que já serviu de um grito de alerta: “Pare, olhe, escute – aqui tem gente!” – grito dado por seus moradores em uma luta onde todos saíram vitoriosos: eles e a cidade.
No nosso passeio vamos aqui subir outra ladeira. Não, não se preocupe, não se angustie – a população de rua antes largada, abandonada, pessoas caídas ao chão, não existe mais essa situação. E boa parte dessas pessoas continua por aqui mesmo, veja só! Sim, agora vivem naquelas casas não mais abandonadas, vivem em condições de gente. E os que, por infelicidade, se entregaram ao crack – você me pergunta. Por aqui temos clínicas de reabilitação, programas públicos de saúde funcionando. Vamos, mexa-se, afinal você está passeando no Centro Histórico de minha imaginação! Logo acima dessa ladeirona, vamos chegar ao Teatro Santa Roza. Sempre tem algo acontecendo por lá.
Chegamos. Mas, antes de entrar, vamos dar uma circulada na Praça.Veja que lindeza é o Paço Municipal. Ali na Escadaria, ao lado do famoso 18 Andares, parece que acontece agora mesmo uma apresentação musical. O prédio Tomás Mindelo onde funciona o Centro Estadual de Arte é tão bonito e está, como todos os outros, muito bem restaurado e preservado. Vamos entrar. O seu jardim é maravilhoso, e aqui é a casa onde a Arte se multiplica.
Daqui podemos ir até ao Ponto de Cem Réis – o espaço fantástico onde fica o antigo Parahyba Palace Hotel, com suas varandas, seus cafés e choperias. E das varandas do Parahyba podemos ver bem a nossa frente a beleza arquitetônica do CH naqueles dois prédios, tão parecidos com palácios de contos de fadas. Sim, era meio contos de fadas a febre de urbanização da década de 20 e um pouco mais adiante. Logo a noite chega, e você vai ver como a iluminação das ruas valoriza ainda mais esse espaço. Precisamos vir aqui no dia 20 de novembro, quando acontece o belo espetáculo de cultura e fé – o Auto dos Orixás. Vamos então ao Pavilhão do Chá ou a Praça dos Três Poderes? Para aqueles lados tem muito o que se ver e fazer. Tem festivais, feiras de antiquários, de livros, tantas coisas… E é tudo tão bonito. Não quero deixar de ir ao Beco da Faculdade de Direito, aposto que o pessoal da Confraria de Malagrida está realizando algo por lá. É tanta música, tanta luz, tanta gente por aqui. O Beco tem uma energia, uma pulsação, parece que essas paredes nos contam inúmeras histórias. Tente escutar. (Aproveite. Muitos não tentam nem na vida real.)
Também podemos ir a Praça Rio Branco, ali sempre está em festa, suas calçadas repletas de mesinhas dos bares e cafés – que lugar aconchegante! E a Casa do Erário sempre tem alguma exposição interessante. Ou, se preferir deixamos a Praça para algum sábado, tem o Chorinho, ainda. Garanto que sim, tem limpeza pública por lá, como em todas as partes do CH. Estamos passeando no centro de minha imaginação, lembra? Ah, não, não lembre, não quebre esse encanto. Sigamos.
Você percebe como é incrível que o CH é composto de polos culturais? O Porto do Capim, o Largo de São Frei Pedro Gonçalves, a Praça Antenor Navarro, a Praça Pedro Américo, o Ponto de Cem Réis, o Pavilhão do Chá, a Praça Rio Branco, a Praça dos Três Poderes, o Beco da Faculdade de Direito com sua escadaria. E as pessoas felizes, caminhando de um polo a outro. É tanto para se ver e viver, não é? Opa! Em minha empolgação com o nosso passeio acabei falando os nomes antigos desses lugares. Sim, quase todas as ruas e praças foram renomeadas para ficarem de acordo com a beleza de tudo isso.
Nada foi muito complicado, é quase matemático, mesmo sendo imaginação: a preservação do patrimônio histórico natural e construído, e os serviços básicos: limpeza, segurança, iluminação. E teve, claro, estratégias de incentivo para que os proprietários de casas literalmente tombadas abrissem mão do que já era quase ruína, e políticas sociais para atender a população de rua, como já disse antes. (Eu insisto nisso porque, lembre-se, já fui trabalhadora das políticas sociais, e o hábito de olhar gente como gente que é, permaneceu.) No mais foi só entregar aos artistas, aos trabalhadores da cultura, os que resistem, os que vivem, aos que ficaram na memória, os fabricantes de beleza e sonhos, a população e aos nossos visitantes. Os guias de turismo sempre dizem: “Vamos começar pelo coração da cidade, depois iremos às praias!”
Ah, esqueci da antiga General Osório que agora tem nome de flor – ou você acha que eu ia “chamar de General essa vista linda?”, e do Centro Cultural São Francisco, da Balaustrada de Jaguaribe e do casario de exuberante beleza daquele bairro. Lindo bem cuidado: história e memória vivas. Quantas histórias, Jaguaribe.
Vamos parar por aqui o nosso passeio na Parahyba, porque imaginar também cansa, às vezes. Talvez ainda dê para tomar um sorvete de tamarindo ali na Praça da Independência – que agora tem nome de passarinho. Por falar em passarinho, você já percebeu o quanto as pessoas por aqui gostam de cantar? Essa cidade é musical.
Vamos? Vai ficando tarde. É melhor voltar pra casa, logo a imaginação se desmancha que nem esse sorvete. Mas, nossos sonhos permanecerão, afinal o poeta decretou que “Somos a Porta do Sol”, não é? E em todas as manhãs esse sol vem nos aquecer. Venha, me dê a sua mão e vamos cantando as canções de amor a essa cidade, que é nossa. Você não quer voltar desse passeio do Centro Histórico de minha imaginação, não é? Eu entendo.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)