Em uma dessas vidas, entre tantas que já vivi, fui coordenadora de um projeto de arte educação onde o multiartista Pedro Osmar era educador de percussão criativa.
No meu papel de coordenadora, estava sempre as voltas com os novelos burocráticos, planilhas, projetos, planejamento, reuniões. O projeto era realizado com crianças e adolescentes da comunidade Porto do Capim. O meu local de trabalho, o primeiro andar do Hotel Globo. Mas, passava os dias descendo a ladeira, e subindo de volta carregada de vidas, de sonhos, de som, e da força de uma luta que já via se desenhar por ali.
O fato é que nos dias das aulas de Pedro Osmar, eu deixava de lado tudo que era esperado que fizesse, e ia ser mais uma criança a entrar no mundo do som.
Na Oficina – era assim que se chamavam os cursos, e acho que ainda hoje, a gente aprendia a transformar o que quer fosse em instrumento musical. Lembro do trabalho em amassar tampinhas de garrafas para fabricar pandeiros e outras invenções. Eram horas iluminadas pelos olhos das crianças na festa de aprender os mistérios do som.
Sempre que se fala em percussão, lembro, e muitas vezes conto, de uma reunião de pais e educadores. Pedro explicava o que era a tal percussão criativa, falava que os pais e mães também poderiam brincar de tirar o som das coisas, que tudo tem som.Uma mãe, então, comentou, com um ar de alívio estampado no sorriso aberto: “Valha! E eu pensando que o meu menino tava endoidando. O menino chega em casa batendo nas paredes, nas panelas, na caixa dos peitos, na cabeça. Dia desses pegou a garrafa de café na cozinha, batia nela e encostava o ouvido. Agora tá explicado!”
Parece simples, mas perceber que tudo tem som é fantástico e te transporta a outros lugares. Pare, olhe, escute: você pode imaginar o quanto essa descoberta era e é capaz de transformar uma vida? Sobrevoar um mundo feito de chão duro, arrancar o som das coisas, descobrir que o som se desdobra em elos que te une aos outros, perceber a força do som. Era essa magia, ou milagre, que acontecia duas vezes por semana ali naquela sala da associação comunitária do Porto do Capim.
Depois veio o tempo das latas. Latões de tinta se transformavam em tambores coloridos, sonoros. Imagino que quando eu saía pelas ruas do centro histórico catando latas, as pessoas que sobrevivem no mundo dos normais deveriam se perguntar quem danado era aquela mulher, e para que recolhia latas. Aliás, virou quase um hábito: crianças, moradores da comunidade, educadores, sempre chegavam carregando latas que encontravam no lixo. Não se podia ouvir a notícia de que algum prédio estava sendo pintado (naquela época isso acontecia por ali) e logo alguém corria para pedir as latas vazias.
Em pouco tempo o centro histórico saberia para que tantas latas. Começou a ecoar na Praça Antenor Navarro e no Largo de São Frei Pedro Gonçalves aquele som inconfundível. Estava nascendo o grupo de percussão criativa La-tá-tá – que fez história, e barulho dos bons. Como se fosse um enorme coração de criança pulsando, mostrando que o centro estava vivo.
Alguns meses depois, a Oficina evoluiu para a composição de músicas. Nessa fase não me meti a tentar ser aluna. Era emoção demais ver as crianças tão pequenas, sentadas numa mesa, ou pelo chão, diante de um quadro aonde iam surgindo as letras, depois vinha a parte musical. As crianças estavam compondo em parceria com o Mestre do Jaguaribe Carne. As crianças que, passados mais de vinte anos, hoje são homens e mulheres, mas, pode testar se quiser: vá até a comunidade e fale sobre esse tempo, eles começarão a contar suas histórias com o professor Pedro Osmar, as latas, a descoberta do som.
Tenho para mim que ainda, nos momentos de lutas e embates dos moradores do Porto do Capim, em defesa de seu lugar, no coração deve ressoar um La-tá-tá – nome criado em parceria de Pedro e seus pequenos descobridores de sons.
Dois anos depois disso tudo, quando acabaram com o projeto, as crianças se reuniram, juntaram tudo que aprenderam com o mestre e criaram um grupo de forró, com instrumentos artesanais. Eu gostava de ouvir as notícias de que havia até um coletivo que coordenava a banda e muita organização, com cronogramas de ensaios e apresentações. Tudo sem interferência de nenhum adulto.
Durante o show Eu canto música de amor – que reuniu alguns nomes da música paraibana para apoiar Pedro Osmar que sofreu um avc, quando todos cantaram juntos, “chamando o povo pra liberdade que se conquista”, essas lembranças me chegaram, e era só fechar os olhos para ouvir as risadas das crianças, o som das latas e também quando cantavam a mesma música. Mais uma vez a magia dos sons: “Lá vem a barca”
O tempo se estende em um só quando a música é o seu lugar. Mas o rio corre e suas águas em tantos momentos se tornam turvas. Paciência, professor, o som da vida há de ser maior.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)