Jó, uma autoabsolvição*
Lembrando Agnaldo Almeida, no seu aniversário.
Das muitas interpretações do Livro de Jó que já me ofereci, geralmente compartilhando-as com a audição de Agnaldo Almeida, a última trata de um conflito mental do ser entre os universos material e espiritual, entre o subjetivo e o objetivo.
Há de se dizer da obviedade: Toda a literatura sapiencial se assenta nesse propósito. Na Bíblia, que universalizou o Livro de Jó, desde a expulsão do paraíso que a humanidade (e somente essa espécie, de toda a criação) é submetida à dualidade, sintetizada entre o bem e o mal.
Entretanto, penso que há um diferencial.
Jó duvida de si – não de Deus, e se põe no ‘banquete das consequências’, sobre a ponte das causalidades. Revisar a vida é o último ato de viver. É bem provável que ‘a fartura de dias’, com a qual se deliciou, tenha sido no portal da eternidade, horizonte de eventos, quando se revelou e reencontrou com Deus.
Em seus diversos lances, Jó vai perdendo, ou seria desqualificando da sua individualidade?, tudo o que o trouxera até aquele instante. É notável que não há tempo para os fatos, nem preparação, nem pedagogia (um não ensina ao outro).
Os bens materiais são ressignificados: deixam de ser posses para serem úteis – apenas.
A família e os amigos saem da dependência, da hierarquia governamental e da hipocrisia para o convívio independente e harmônico.
Uma versão temática, posterior e coletiva, do Livro de Jó é A Conferência dos Pássarros (Farid Ud-Din Attar), no epílogo, quando os últimos deles, os pássaros, desnudos e em si, descobrem que são, literalmente, o Deus procurado.
Jó, como os pássaros, encontra-se revelado na imagem à qual se referiu Borges, na conclusão de um poema yogue (Del infierno y del cielo – El otro, El Mismo) – e julga-se, absolvendo-se:
…
¡oh Tiempo! tus efímeras pirámides,
los colores y líneas del pasado
definirán en la tiniebla un rostro
durmiente, inmóvil, fiel, inalterable
(tal vez el de la amada, quizá el tuyo)
y la contemplación de ese inmediato
rostro incesante, intacto, incorruptible,
será para los réprobos, Infierno;
para los elegidos, Paraíso.
*Conforme Aulete
Irapuan Sobral
Poeta. Compositor. Criatura de Deus. A igualdade fraterna universal lhe basta.