Ontem, dia 25 de julho, foi o dia nacional do escritor. Eu nem sabia que essa data existia. Mas de todo modo, ao saber, não me perguntem o por quê, fiquei tocado e buscando forças para voltar a escrever esta coluna aqui. Talvez haja algo de esotérico em datas comemorativas, não sei, o hermetismo das datas simbólicas sei que toca o coração de muita gente. Lembro de ter visto uma aula-espetáculo de Ariano Suassuna e de ter, não com pouco espanto, ouvido do próprio, toda uma composição temporal de datas marcantes em sua arquitetura autoral, um calendário que compõe a mística de suas obras, e de certa maneira lamentar que em mim o meu mundo subjetivo seja desprovido dessas qualidades que marcam a trajetória de um escritor admirável como fora o autor de A Pedra do Reino. Há um certo misticismo quando se acredita em datas que representam talvez forças sobrenaturais, quando, de certa maneira, ao menos subjetivamente, certas datas compõem marcos que são como portos nos quais o veio criativo de autores aporta, ancorando toda uma criação estética, e mais do que isso, compondo um certo lunário pessoal e intransferível, algo que se mistura à biografia do autor e à composição de sua obra.

Fiquei pensando o que o dia nacional do escritor representa para mim, eu que desde muito cedo sempre quis escrever e que por muito tempo pensei que poderia ser esse o meu modo de vida, o ganha pão de todo o dia, o que eu projetava como futuro de trabalho para mim, quando então eu me via a produzir romances, peças de teatro, e que tudo isso somando me daria um aporte financeiro que me permitiria viver daquilo que amo fazer. Sonhar sempre é possível e é necessário, do contrário a vida, ao menos a vida mental,  seria um inóspito deserto de desejos não realizados. Jamais ganhei um centavo com o que escrevo ou escrevi, não tenho leitores além de alguns amigos fiéis, somei ao longo da batalha derrotas seguidas em minha busca por editores de meus poucos romances, mas não me queixo, amo o tanto que produzi, e embora pouco lido, cada obra foi absolutamente necessária para mim, cada uma surgiu num momento específico como resposta a questões sensíveis que de alguma forma me inquietavam e que correspondiam a um projeto estético do instante em que foram criadas, e mais do que isto, cada obra foi uma tábua de salvação pessoal e emocional. Sem elas, este escriba que não encontra nenhuma emoção extraordinária em datas e dias que se somam no calendário, este escritor desprovido de aporte poético seria uma alma vagante na aridez de sua própria realidade. Um retirante às avessas, um severino de si, cabralinamente falando.

Então, para mudar a chave do meu desalento neste dia e para responder a inquietação de minha alma, eu que não tenho obra significativa que desejaria ter, me consolo lendo as obras das pessoas e assim exerço a outra função que sonhei e desejei para mim, a de ser simplesmente um leitor. E nesta direção devo dizer que uma obra me conquista por sua inteligência e por sua capacidade de abrir perspectivas que antes eu não enxergava. É aí que eu encontro o insight poético, a minha Gestalt particular, e neste sentido quero prestar reverência a duas obras completamente diferentes uma da outra, de duas pessoas absolutamente diferentes, às quais me provocaram o prazer da leitura no sentido do escreviver – para lembrar de Jomard Muniz de Brito.

O primeiro, Caetano Veloso. Mas não quero falar do poeta, do músico que quis o destino que pra nossa sorte nascesse brasileiro. Este, todo mundo sabe, mesmo os que não acompanham a sua obra, uma ou outra canção devem conhecer. Mas além da obra poético-musical há a obra para mim até então inusitada, de crítico de cinema. O seu livro, recentemente lançado, Cine Subaé, me provocou um êxtase inesperado. Se antes eu o admirava por tudo o que produz em poesia e música, agora eu somo àquela esta, a do poeta que ama o cinema e que quis ser crítico, tanto que produziu ao fim um alentado volume com as críticas que escreveu desde os dezoito anos na sua cidade mítica, Santo Amaro da Purificação, quanto cineasta, tanto que produziu um único filme, Cinema Falado, um filme que tem inspiração na estética da Nouvelle Vague, godardiano por excelência.

Cine Subaé é um volume de críticas nas quais o poeta vai analisando os filmes e os autores de sua paixão, desde Glauber Rocha, o baiano visceral para a cinematografia brasileira, passando pelos cineastas franceses da Nouvelle Vague até chegar aos italianos do realismo do pós-guerra, Fellini, principalmente, entre eles. Impressiona, para quem apenas o sabia músico, o conhecimento que Caetano Veloso tem de cinema. Não apenas o saber, mas, sobretudo, o amar. Tanto que depois da leitura do seu livro eu voltei a assistir Fellini, coisa que o fiz quando em Jampa, adolescente, era assíduo frequentador de cineclubes. E amei a identificação que tenho com ele sobre o cinema americano, de não gostar das fórmulas narrativas que terminam quase sempre em perseguição de carros e batidas, estas sim, cinematográficas. Lendo Cine Subaé ficamos também informados que foi o Cinema Novo, principalmente Terra em Transe, de Glauber Rocha, que inspirou a criação do Tropicalismo como movimento cultural. Caetano Veloso é, mais uma vez, imprescindível poeta, músico e cineasta.

Saindo da leitura do velho baiano para a leitura da jovem potiguar Alice Carvalho.

Alice é atriz e dramaturga. Ontem, lançou aqui no Rio o seu livro Inkubus, outra obra que me deixou em êxtase. Ao fim da leitura fiquei com a agradável sensação de que uma obra como a que Alice produziu somente poderia ser criada por uma mulher. Mas não uma mulher qualquer. Uma mulher transgressora, que escreve com a força que o seu lugar de fala lhe permite. Há uma verdade muito íntima e profunda na obra de Alice Carvalho e é isto que me encanta. Inkubus é uma obra para o palco e ao lê-la o palco me aparece em toda a sua dimensão, o que é uma característica de uma obra precisa, pontual no sentido da linguagem. Gostaria de ver a própria Alice representando o seu texto, ela que é uma atriz igualmente visceral.

Enfim, nesse dia do escritor me ocorre que ler também é um modo de criar, que se não fossem as leituras esta crônica não existiria e este escriba aqui continuaria vagando no limbo do seu devaneio desértico, lugar onde nada se cria, nada se copia, e tudo seria em vão.