No caminho espiritual o julgamento é um perigo. Sempre que julgamos corremos o risco de cometermos injustiças e nos afastarmos do verdadeiro propósito da busca pelo autoconhecimento. Mas o vídeo que viralizou nas redes sociais com o Dalai Lama pedindo para um garoto indiano chupar a sua língua merece uma reflexão.

Acontece que eu estive em Dharamshala, sede do governo do Tibete livre na Índia, há menos de um mês. Meditei no templo budista do Dalai Lama várias vezes e a força espiritual daquele lugar é inegável. Mas algumas coisas me chamaram a atenção.

Pelas ruas de Dharamshala milhares de monges e monjas budistas com suas roupas vermelhas escuras chamam a atenção. Eles fazem uma verdadeira movimentação das lojas e restaurantes daquela cidade dos Himalaias, no estado de Himachal, Norte da Índia. O mundano se mistura ao sagrado e a vida segue seu ritmo cotidiano em Dharamshala.

O turismo intenso de Dharamshala tem na figura representativa do Dalai Lama a sua maior atração. Obviamente que o monge tibetano não é acessível no dia-a-dia na cidade. As conferências concedidas por ele são cercadas de um forte esquema de segurança. Existe um temor de possíveis atentados contra a vida da sua Santidade por representar uma resistência à China que invadiu o Tibete nos anos 50.

Mas a Índia que abrigou generosamente o governo independente do Tibete pode ficar numa situação delicada com esse caso que ganhou repercussão mundial. O menino beijado na boca pelo Dalai Lama é indiano. E beijo na boca é uma coisa considerada muito íntima na Índia. Tanto que os milhares de filmes produzidos por Bolywood, a indústria cinematográfica indiana, não mostram beijos. É um verdadeiro tabu para a moral do país. Eu diria que para eles um beijo na boca é mais “ofensivo” do que uma cena de sexo.

E aí vem a reflexão: como o governo indiano vai reagir a essa situação? Houve uma quebra de confiança ainda mais complicada por tratar-se de uma criança. Por outro lado, as relações políticas e diplomáticas entre a Índia e a China são tensas, inclusive, com ameaças de guerra. Olha só a confusão que a Santidade budista causou com o seu “arroubo” de afetividade inoportuno.

Mas a minha proposta nesse artigo é mostrar como a repressão sexual em nome de uma suposta “pureza” espiritual acaba por gerar aberrações. Esse caso do Dalai Lama registrado pelas câmeras é só mais um. Aqui mesmo no Brasil quantas notícias já lemos de condutas de sexualidade inadequada de padres, pastores, médiuns e outros mestres.

Longe de usar a régua da moralidade acredito que existe uma hipocrisia muito grande em muitas das entidades religiosas. Se prega uma coisa e se faz outra. Porque não é fácil domar os desejos sexuais. Ele faz parte da natureza humana e reprimi-lo desencadeia processos desastrosos. Temos um lado espiritual e outro corporal com suas necessidades que não pode ser ignorado.

O sexo deveria ser tratado com naturalidade e transparência dentro das instituições religiosas. Isso certamente evitaria abusos e agressões. Porque esses casos sempre acontecem nos subterrâneos de maneira velada e quando vêm à tona se tornam escândalos. O pior é que existem as vítimas que confiam cegamente nos seus ” guias” e acabam sofrendo traumas que atrapalham as suas vidas.

Alguém vai procurar luz e conforto ao seu sofrimento e acaba sofrendo uma violência que certamente marcará a sua vida. Isso não é aceitável. Imagine essa criança beijada pelo Dalai Lama e a sua família com essas imagens divulgadas mundialmente? Será muito sofrimento para alguém que estava diante de uma suposta figura iluminada que ao invés de proporcionar-lhe graça trouxe desgraça. É muito sério o que aconteceu. Que me perdoem os seguidores e admiradores do Dalai Lama, mas houve uma irresponsabilidade sem precedentes nessa história toda.

Alguns argumentam que a cena entre o Dalai Lama e o menino é uma inocente brincadeira de criança. Não concordo. O Dalai Lama como um líder político e espiritual deveria pelo menos conhecer os costumes do país que o abrigou e saber que na Índia um beijo na boca público não é encarado pela sociedade como brincadeirinha de crianças.

A verdade é que muita gente procura os caminhos espirituais para fugir de si mesmo e não para se autoconhecer verdadeiramente. O sexo faz parte do autoconhecimento. É a energia que mantém a espécie humana viva no Planeta e não pode ser tratado como uma coisa suja e pecaminosa.

Enquanto continuarem a tratar a sexualidade como uma coisa subterrânea afastada dos desígnios divinos nas organizações religiosas essas aberrações acontecerão. Está na hora dos mestres, padres, pastores e médiuns lidarem com essa energia poderosa à luz do esclarecimento, da verdade e do amor para que sexualidade seja uma fonte de prazer e não de sofrimento.

 

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Diário de Vanguarda