Um minuto de vida pode se tornar algo eterno, não sou eu que afirmo, na verdade, li ou ouvi algo assim, e concordei de imediato, isso de fato acontece, e algumas vezes por dia, basta ter atenção ao que se vive, sem esquecer que viver é algo que acontece a cada segundo. Alguns momentos se tornam acontecimentos para algumas pessoas, enquanto que para outras é algo banal, corriqueiro, sem importância. (Às vezes é preciso dizer o óbvio, e ultimamente quase sempre.)
Sou colecionadora de pequenos acontecimentos: a flor que brota, a música que é lançada, o gole de vinho,formigas enfileiradas em uma organização coletiva de dar inveja a quem vive nessa tentativa de ser gente, revoadas de uma borboleta, gatos inventando brincadeiras com coisas miúdas ou invisíveis para nós, o cheiro do café coado, o vento no rosto, e um sem fim de coisas.
Dia desses algo de espetacular aconteceu: um bem-te-vi entrou no apartamento em que moro. Era domingo, de repente ouvi uma barulhada, e chegando a sala, vi o bichinho dando revoadas. Pousou no alto da estante de livros. Ficou olhando ao redor. Ele retomando a respiração e eu prendendo a minha, ainda no susto e maravilhada em ver tão de perto esse bichinho de que adoro ouvir a sua cantoria.
Deixei que voasse a vontade até encontrar o caminho de volta. Mas, confuso, voou em direção a saída errada: a janela da cozinha, que dá acesso a uma rua de prédios e não aos terrenos baldios onde ainda é possível a vivência de um bocado de bichos – que são alheios a minha observação, enlevada, e por vezes fotografando seus momentos: cavalos, vacas, carcarás, corujas, pardais, rolinhas, beija-flores, bem-te-vis e até uma garça. Então, com cuidado, e tentando não errar no equilíbrio entre firmeza e delicadeza, peguei o bichinho e levei até a varanda, de lá ele voou.
Para minha surpresa, na segunda-feira, encontrei o bem-te-vi, novamente no alto da estante, e dessa vez cantando. Como eu sei que era o mesmo? Não vou cansar a ninguém tentando explicar, mas sei que era. Então resolvi deixá-lo a vontade. Cantou, descansou, pousou na grade da varanda por uns bons minutos e, finalmente, voou.
Aconteceu algo parecido com um beija-flor, em outra moradia, já faz um tempo. Numa confusão entre alguns, um deles bateu contra a porta da varanda e caiu no meio da sala. Segurei o bichinho com uma mão e coloquei água na palma da mão esquerda para que ele pudesse beber e se recuperar. Fiquei impressionada com a força daquele artefato da natureza, que parece tão frágil. Suas asas e bico têm a força de um motorzinho potente.
Essa minha associação com passarinhos vem de longe. Na infância gostava de rabiscar nos cadernos passaredos voando em bandos. Era quase uma mania, algo inconsciente. Minha mãe brincava com aquilo: “E esses passarinhos estão indo para onde?” – fazia essa e outras perguntas. Já adulta consegui as respostas do que talvez minha mãe já sabia. Eu estava no voo daqueles passarinhos imaginários, já construindo o desejo de me tornar independente de regras impostas. O desejo de ser uma pessoa que segue as próprias regras, na medida do possível.
Enquanto rabiscava passarinhos livres, meu pai criava pássaros em gaiolas. Em determinado período chegou a ter um pouco mais de vinte gaiolas. Eram muitas cores e cantos engaiolados: concriz, galos-de-campina, canários, pássaro-preto, e tantos outros que não lembro as espécies.
Certa vez, sem falar nada uma para outra, sem nenhum gesto sequer, eu e minha mãe cumprindo a tarefa que nos foi deixada por ele de alimentar os passarinhos enquanto viajava, deixamos abertas as portas das gaiolas “por descuido ou distração”. No dia seguinte, quase todas as gaiolas estavam vazias. Era tempo de quintais e muitas árvores – espaços para voar e viver. Restaram poucos. Esses estavam já adaptados a cantar e olhar o quintal entre os vãos dos palitos das gaiolas. Os mais “rebeldes” ficavam em gaiolas de ferro. Mas, naquele dia, todas as portas estavam destravadas. Deixamos aos bichinhos a escolha e a esperteza de terminar a tarefa. Algo inocente, quase como se, por ser em silêncio, e pela metade, nos tirasse a autoria do feito.
E deu certo, foi o que vi com meus olhos espantados. Quase todas as gaiolas restaram vazias. Meus rabiscos se tornavam reais.
A doença do alcoolismo destruía o lado bom de meu pai: o mesmo homem que criava pássaros em gaiolas e tinha rinha de galos, me ensinou a amar a natureza. É assim, feita de contradições, a relação entre pais e filhos quando pai ou mãe é alcoolista.
De volta para casa, ao encontrar as gaiolas vazias, meu pai, em um surto de raiva, matou os pássaros que ficaram. Eu não vi, mas ouvi minhas tias e minha mãe falando daquela “malvadeza”, dos pássaros com os pescoços quebrados, caídos ao chão das gaiolas. Eu não vi, mas a cena ficou em minha memória por muito tempo. Ainda em silêncio, me ressentia pelos bichos que não atinaram de abrir aquelas portinhas, e sentia felicidade por aqueles que voaram. Cresci com o medo de um dia ver minha mãe, também ser um pássaro morto em sua gaiola. Uma sentença pesada para uma criança.
Meu pai, já velho, adoeceu do coração. Eu, a quem ele ouvia com respeito, fui convocada a passar um dia acompanhando-o no hospital, para evitar que arrancasse o soro, sondas e tudo que estava em seu corpo, preso a cama. Ele havia feito cateterismo. Como forma de distraí-lo, comecei a perguntar de suas histórias. E fui percebendo que nada daquilo acontecia por acaso. Aquele homem que pouco ria, talvez pela primeira vez, contou sobre fatos de sua vida para outra pessoa. No fim da tarde, senti inteiramente a palavra perdão. A algumas palavras não é dado apenas saber de seus significados e nem repeti-las, é preciso sentir para que elas sejam, assim como o voo é necessário aos pássaros. Naquele fim de tarde perdoei meu pai. Dois anos depois ele voou.
Pássaros voam em minha vida, como o bem-te-vi que me visitou. São presentes, recados, celebrações, são momentos de encontros da menina que desenhava passaredos nos cadernos e que libertava pássaros de verdade, com a mulher em que ela se tornou, por escolher abrir as portas de todas as gaiolas em que tentaram lhe prender. Sempre recuperando e abrindo as asas, curando as penas, apaixonada pela aventura de viver e voar. E sim, na vida um minuto pode se tornar eterno.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)