Corria o ano de 1995 quando Raimundo Sodré, voltando de uma viagem ao Brasil (eu morava em Paris nesse momento),  me disse que a grande novidade no trópico era o disco de estreia de um conterrâneo lá da Paraíba. E então me apresentou o disco: Aos Vivos, de Chico César.

Ouvimos ambos o disco e ficamos – Raimundo já estava – maravilhados. A sensibilidade e a inteligência das canções me chamavam a atenção, até porque eu identificava as influências poéticas que nos eram comuns. Estudamos na mesma universidade e tivemos como mestres os mesmos professores, gente como Jomard Muniz de Brito, o maravilhoso anarco-poético-professor-cineasta e deseducador das caretices, cáustico crítico das tradições e das contradições escondidas nos discursos conservadores. Autor de textos filosóficos capazes de surpreender a cada frase, a cada expressão, palavras que criam imagens, associações e ideias inesperadas, num desnorteador malabarismo poético. Posso estar enganado, mas eu vejo muito de Jomard quando Chico César escreve em Beradero sobre “a moça cosendo roupa com a linha do equador”, e sobretudo quando ele canta que “o olhar ver tons tão sudestes e o beijo que vós me nordestes”, esse jogo que rapidamente muda a nossa percepção. E o que me chamava a atenção era que apenas com o violão, num disco de estreia, ao vivo, Chico César conseguia criar uma obra sólida.

Ontem eu pude assistir Chico César cantando com Geraldo Azevedo, na Fundição Progresso, no Rio de Janeiro, no show Violivoz. Dois potentes poetas e instrumentistas, ambos com os seus violões, mas capazes de fazer uma plateia gigantesca dançar e cantar, dois instrumentos apenas que soam como três, quando Chico ataca a madeira do seu violão ao tempo em que ataca as cordas, fazendo surgir uma inesperada e delicada percussão.

Sempre que eu assisto shows de Chico César saio tocado em algum ponto de minha sensibilidade, maravilhado que fico com a sua inteligência poética, e não apenas isso, mas a sua performance no palco também é impecável. Chico César é uma presença que preenche o espaço da cena com muita verdade no que canta, com inteira propriedade no que diz.

Chico traz para o palco os amores nos profundos sertões da alma, as esperanças místicas que encantam e atormentam, o chamamento para a alegria, a liberdade e a atenção na resistência política, desde Aos Vivos: “dança o povo negro, dança o povo índio sobre as roças mortas de aipim”, criando uma performance como vozes tribais na sequência final. Um chamado ancestral vibrando.

Chico César não é apenas um poeta de caudaloso veio lírico. É também o poeta da consciência negra, com canções pungentes como Mama Africa, que evoca a luta dos pretos desse país constrangedoramente racista e excludente. Dentre as canções de protesto ( ! ) – olha eu usando expressão dos anos setenta – talvez melhor fosse falar em canções de consciência social coletiva. Dentre essas, a mais incisiva, Reis do Agronegócio, se estende num discurso minucioso, é a voz do povo explorado ocupando o seu lugar de fala, por ousados onze minutos. Não é uma canção para tocar no rádio, mas toca na ferida da exploração irresponsável da livre iniciativa e do agronegócio que a tudo envenena, desde a saúde pessoal da população à saúde política do país, quando patrocina aventura golpista. Chico César representa a cara do povo brasileiro, do povo preto, do povo miscigenado, do povo nordestino retirante que leva na matula o violão e no peito a canção e a poesia vibrante de um povo criativo, que seria um grande povo, segundo o que dele já falou Paulo Pontes, se tivesse um pouco de feijão no fundo do prato, se tivesse justiça no prato da balança social.

Chico César e Geraldinho Azevedo, Violivoz, que belo show esses dois nos dão. Às vezes eu sinto orgulho meio besta e muito prazer de simplesmente ser contemporâneo dessas gentes, desses Chicos, o César e o Buarque de Holanda, de Caetano, de Gil, de Geraldo, de Alceu, de tantos e tantas que com a sua poesia contribuem para construir o bem estar geral, estabelecendo valores culturais, valores éticos, étnicos e poéticos fundamentais para consolidar a alma nacional em tom maior, revelando o que há de melhor no ser e no povo brasileiro.