Por questões de sobrevivência, ando traçando planos de ficar alheia aos acontecimentos que se tornam notícias. Pode ser que daqui a algumas horas ocorram mudanças de metas nos tais planos que vou configurando. Por agora meus olhos deslizam nas redes sociais em um achar tudo, ou quase tudo, sem sentido. Tantas opiniões e “barulho” nas postagens de quem não encara nada nem ninguém – os protestos ficaram presos nas redes sociais, e tantos silêncios que me escorrem pelos dedos que começam a teclar comentários para logo em seguida apagar. Os experts em tudo, os sabedores do nada, as opiniões de quem gira em torno de seus parcos conhecimentos baseados em achismos.
Leio nos portais de notícias que calaram os gritos da Palestina para que o mundo não saiba do massacre de seus filhos e filhas, mas o mundo sabe. E pouco se faz por mais que pareça haver medidas que interrompam o que não é uma guerra, mas o massacre de um povo, um genocídio que se prolonga há décadas. Lembro que via essas imagens quando era ainda adolescente, nas publicações da Organização pela Libertação da Palestina – OLP/Brasil, que chegavam a minha casa. Ainda tenho na memória essas imagens, pois que estavam entre as primeiras aproximações que eu tinha com a descoberta da estupidez humana. Nesse tempo as imagens não chegavam assim tão rápidas, em um bombardeio de stories, postagens, vídeos, e tanta coisa. Para quê? Para onde vai o que talvez as pessoas que postam considerem denúncia? Para onde vai? Quem ou o que vai parar esse estado de coisas?
Entre uma ocupação e outra vou separando o que preciso ler sobre a Causa Palestina – de que ouvi falar tão cedo na vida. Preciso entender alguns aspectos da atualidade de um massacre que se perpetua. Vou acumulando links para ler depois as matérias, textos, opiniões, reportagens. Quando tiver esse tempo, um sem número de pessoas já terá morrido. E de que servirá que eu saiba ou não? Muito menos a quem está encurralado nas cercas da morte, naquela Faixa de Gaza, que ainda tão jovem tentei entender porque existia.
Tenho andado ocupada com coisas que até gosto de fazer, com coisas que escolhi. Isso me faz bem, embora por vezes me canse – e só me cansa quando tenho que lidar com pessoas que deixam a alma vagar nas vaidades, na prepotência, na raiva, no desrespeito, e outras quinquilharias, que existem em qualquer meio.
Mas entre guerras, massacres e as mazelas do dia a dia, pondero que muitos preferem nutrir-se da escuridão, embora a luz exista, e que são muitas as questões para explicar tal coisa. Para isso existem as ciências humanas, e quem sou eu para me perder em teorias complexas, se com isso não vou mudar o mundo? Da vida acadêmica desisti tão logo defendi a dissertação de Mestrado. Aquilo tudo me deixava distante de gente e em uma distância que não poderia mais perceber o humano em tudo, inclusive em mim. Cansei.
Nessas décadas de vida cansei e me reanimei me reinventando diversas vezes – amo essa minha característica, e rio me livrando dos obstáculos e das teses que algumas pessoas usam para desmanchar o que, na verdade, são as minhas vigas de sustentação. Sim, eu ainda amo muito viver, é preciso repetir isso. Ou talvez não precise repetir coisa nenhuma, eu que a ninguém nunca dei satisfação do que sou, quero, vivo e penso, salvo raras permissões dadas as pessoas que têm a chave para andar por alguns cômodos dessa casa que sou eu.
Vou por aqui pensando, escrevendo essa crônica (será mesmo uma crônica? Não sei. Não me preocupo com as cadeias em que se prende a escrita, apenas escrevo. Escrevo porque escrevo.) Agora mesmo escrevo, leio notícias, enquanto dou um tempo para voltar ao trabalho com um projeto técnico, e antes disso tirar a roupa da máquina de lavar. Enquanto o povo palestino é massacrado diante dos olhos do mundo, eu vou colocar roupa no varal: é assim a vida. É esse o fio de equilíbrio da existência, para que o mundo não se transforme em um manicômio. (E talvez alguém leia isso e pergunte se já não é assim, o mundo um imenso manicômio.)
Então, entre uma coisa e outra pensei o que foi se transformando em quase um plano, como disse lá no começo: quem sabe retirar os portais de notícias da barra de favoritos no meu notebook, quem sabe dar um tempo nas redes sociais desativando todas elas. Quem sabe entregar meu tempo só as coisas que me alimentam de alegria, amor, liberdade (essa relativa e mínima liberdade) Coisas que desde antes de minha geração tanta gente começou a buscar. E nessa busca encontramos tudo isso aqui e ali, enquanto caminhamos nos desviando das armadilhas do medo, da morte, das quinquilharias dos que apequenam a vida.
Nos portais de notícias li que uma mulher de 27 anos assassinou sua filha de 01 ano, com dez facadas. O motivo foi a raiva que sentiu quando o marido pediu a separação. Ler isso foi como se uma dessas facadas ou todas elas tivesse me atingido. Eu chorei a dor do mundo. Eu vi os olhares de todas as crianças nos olhos daquela menininha – que os portais de notícias insistem em publicar a sua imagem para causar a comoção popular. Chorei, chorei e cansei.
Não ler, não saber, não vai mudar o mundo, e eu a essas alturas já sei que não vou mudar o mundo. Lembrei agora da música de Gilberto Gil “não vou mudar o mundo louco dando socos para o ar”. A música de Gil talvez seja minha religião – me ocorreu pensar isso agora.
E eu quero me dar o direito da música de Gil, e de todas as músicas. O direito do pão, do vinho, da cerveja, das amizades, das amorosidades. O direito de perceber a natureza que ainda resiste, de ouvir meus bem te vis urbanos, de reencontrar a criança que vive em mim – que está assustada, e convidá-la a brincar.
“O silêncio das línguas cansadas” da música cantada por Elis, o descanso das “minhas retinas fatigadas” nos poemas de Drummond e dos amigos e amigas poetas, aqueles que são amigos de fato e os que são porque a poesia assim nos torna no momento do encontro marcado dos sentimentos traduzidos em palavras.
Por falar em poesia, quem sabe adaptar para o meu mundo particular o poema de Thiago de Mello e deixar decretado “que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, tem direito a converter-se em manhãs de domingo.” (Que eu trocaria por manhãs de sábado. Desde sempre adoro as manhãs ensolaradas dos sábados, embora acorde sempre tarde.)
E vou terminando esse texto, que não sei a que se presta, para cuidar de encontrar a pessoa alegre e cheia de fé que sou ou fui, mas que se perdeu nos portais de notícias das últimas semanas.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)