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Eu gostava de ler as crônicas de Natanael Alves. As ideias poéticas me seduziam, o encanto das palavras, os temas do cotidiano escritos na mais agreste redação de um jornal. Viver da sedução do texto, era o que eu desejava, permitir que as construções sintáticas vibrassem nos abismos engenhosos das locuções e tomassem conta de mim, de minha sensibilidade de rapaz ainda com o rosto pipocado de espinhas. Eu lia e desejava escrever como Natanael Alves. Depois que ele se foi para o infinito não ser, Luiz Augusto Crispim preencheu com a mesma categoria a minha vontade diária de ler pequenos escritos, observações por vezes mundana, por vezes profana, por vezes lírica, por vezes política, mas, principalmente, confessional. O confessional me seduz desde as Confissões de Santo Agostinho, passando pela leitura de diários ou de biografias, vou colhendo revelações sobre o processo criativo de cada autor que leio, e vou me deliciando com o que vou descobrindo, por vezes me identificando com quem escreve e a sua luta vã das palavras, muitas vezes me deixando seduzir pelo inusitado, por aquilo que vai além do esperado e surpreendente, como um suspiro poético, um inefável gozo estético, quase místico, quase corporal. Depois, numa linha sequencial dos contemporâneos a quem devo o prazer cotidiano das crônicas, vieram as que Bráulio Tavares escrevia no Jornal da Paraíba. Bráulio e a sua arte caleidoscópica, e a sua curiosidade pelas coisas do mundo visíveis e os invisíveis sertões que nos habitam, e que está em toda parte na concepção de Guimarães Rosa, tanto no sertão de Ariano Suassuna, de quem Bráulio Tavares é exímio conhecedor, quanto nos sertões do universo sem fim, de onde saem os ovnis que pousam na mente do Raio da Silibrina.

Estou amando. Este é o meu estado permanente de leitor. Amar o texto, colecionar palavras obsoletas pelo desuso, amar outras tantas pelo reuso, nessa construção imagética que as palavras desenham no espaço imaginário do leitor. As coisas incompletas, segundo o título do livro que o poeta Hildeberto Barbosa publicou há dez anos, e onde eu encontro esta frase lapidar e perturbadora: a arte é o lugar do não saber.

Hildeberto Barbosa Filho, eis o cronista que leio agora como em permanente estado de oração. Eu que não sou dado às rezas, leio cada metáfora, e são muitas, surpreendentes, como um arremesso poético que em cheio atinge a geografia da minha alma. Amo a elegância dos temas, o confessionário do bares nos quais o penitente poeta destila a prosa púrpura das crônicas regadas a vermute, a vinho, a cerveja, a doce cachaça que se transmuta em texto. O poeta é um pouco o Baco dionisíaco como um Zé Pelintra.

O cerco da memória, na expressão de outro potente poeta, Sérgio de Castro Pinto, me parece que seja a crônica. Sérgio, ao contrário de Hildeberto, convida o leitor para o apreciar  como que tomando uma xícara de café no balanço da rede: livros acendem luzes, custam uma fábula – em volts – a leitura, diz este enorme poeta minimal na abertura do seu livro quase confessional, O leitor que sou.

Assim, de leitura em leitura, vou colecionando aforismos que se colam em meu entendimento precário do mundo, como o que escreveu W. J. Solha em seu recente livro AutoB/I/Ografia, que é como o título, um imenso painel de mosaicos da memória do autor, que assim resume com a sua nem sempre aptidão de síntese as questões da criação: o gênio artístico consiste na capacidade de resolução – excepcional – de problemas técnicos e estéticos. É ainda em Solha, que talvez seja o mais científico dos poetas, beirando o acadêmico em sua ânsia de entendimento das coisas imaginárias, que encontro essa feliz comparação: no esporte todos obedecem a regras severíssimas. Na arte, não. Desde Marcel Duchamp decretou-se que qualquer coisa é arte e que todos são artistas. É uma meia verdade, um silogismo no qual a premissa básica parece verdadeira: todos somos artistas. Algo muito semelhante foi dito por Augusto Boal: todos são atores, inclusive os atores. Todos somos capazes de escrever, mas somente o poeta, o artista, o ator, o compositor é capaz de juntar palavras que de tanto fugir aos padrões costumeiros possuem a capacidade de nos colocar, a nós leitores, em estado de suspensão poética. E para isto, sim, sobretudo para isto não há regras que condicionem o fato poético. E afinal, o que é isto, o fato poético, a poesia? Pode ser um verso, um soneto, um quadro, a melodia que soa dos instrumentos criados pelos humanos ou o chilrear dos passarinhos de Hildeberto presos na gaiola. A poesia está em toda parte, escreveu em uma de suas crônicas o poeta Manuel Bandeira. A poesia está, penso eu, sobretudo na alma do leitor debruçado ao texto, por onde andarão as sintaxes da criação que compõem a gramática universal do espanto estético.