Sem título, série Identidade, 1976 (foto da capa do livro) Foto Claudia Andujar

Comecei a leitura do Livro “A Queda do Céu”, Escrito por Davi Kopenawa e Albert Bruce, conteúdo indispensável para os tempos que vivemos, assolados pelas crises climáticas, agravadas pelo negacionismo e por medidas de expansão do modelo civilizatório pós-industrial, que vive na atualidade uma de suas piores tragédias.

Logo no prólogo da obra, deparei-me com a palavra “coivara”. Fiquei acariciando aquelas três sílabas e me transportei de pronto para a minha infância. Pensei nas tantas palavras que fizeram parte daquela época, no alto sertão pernambucano, mais particularmente no sítio do Angico Torto, pertencente ao fazendeiro Joaquim Paulino e onde meu pai trabalhou como meeiro por vários anos.

Dos cheiros da madeira e do mato queimado, das cinzas da coivara, acudiram-me outras palavras e expressões que habitavam o meu universo infantil: O terreiro de guente era onde brincávamos com pedras, pedaços de pau e com a terra molhada, quando chovia. No oitão, minha mãe tinha um girau, onde guardava suas panelas de barro.

Gastura e carestia faziam parte do vocabulário comum dos meus pais, e, muitas vezes, minha mãe procurava um cachete, porque tinha acordado com um farninzim. Quantas outras palavras dormem no fundo da minha memória, tisnadas pelo esquecimento ou pela falta de uso?

Leitura que puxa leitura, lembrei-me do livro de Pablo Neruda, “Confesso que Vivi”, onde ele afirma que os colonizadores nos levaram tudo, mas deixaram-nos as palavras. Sim, muitas das palavras usadas na minha infância, descobri depois, fazem parte do linguajar galego, outras porém, pertencem aos povos indígenas, e o livro de Kopenawa começa por nos mostrar a profunda diferença entre as palavras dos yanomami e as palavras dos brancos, os povos das mercadorias, como ele mesmo os denomina.

Hoje acordei com a sensação de que muitas das palavras da minha infância ausentaram-se de mim, como se fossem um grande pedaço de terra que eu perdi, e, enquanto escrevo, sinto como se grandes faixas de territórios fixados por palavras vão sendo perdidos, por milhões de habitantes do planeta terra.

Sim, minha primeira infância foi marcada pelo fenômeno da desterritorialização. Tenho uma vaga lembrança de uma viagem, feita por minha família, em um carro de bois. Quantos anos eu tinha? Três, quatro anos? Habitei o Angico torto por alguns anos, mas, aos seis anos, vivi o primeiro longo corte da vida familiar, quando vim para João Pessoa, estudar como interna na escola especial. Somente nas férias voltava para o sítio, cantando alto, na noite fresca do velho Pajeú, enquanto a caminhonete me levava para casa.

Como os indígenas, os agricultores e vaqueiros pobres do sertão nordestino também eram nômades. Como meu pai, iam de fazenda em fazenda, para o trabalho de meia. Levavam com eles os hábitos simples, as crenças e as palavras. Preparavam as coivaras, olhavam pro céu e viam a chuva pasmada, como no livro de Mia Couto, a chuva pasmada, que se desfazia em nuvens de espera.

Empurrados de terra em terra, cheios de filhos que migravam para o sul maravilha, com suas mãos calosas e seus peitos magros, onde guardavam as angústias de dentro, cercavam as fazendas alheias, guardando o gado e as plantações dos latifundiários.

Empurrados pela seca, como meu pai, vinham para a cidade, desterrados do campo, do cheiro de mato, da sombra do juazeiro, do céu encantado, da lamparina acesa nas mesas de suas cozinhas pobres. Vinham para a cidade, onde não havia mais o solo das suas palavras antigas.

E agora sinto como se as palavras se ausentassem do mundo todo. Como se vivêssemos o último grande desterro. Na faixa de Gaza, quantos já se calaram? Nas favelas do Rio de Janeiro, em São Paulo, em João Pessoa, onde se inventou a palavra ocaida, quantas outras palavras nunca mais serão ditas?

Chamo as palavras da minha infância, mas já não ouço os ecos das serras do interior, e sinto, sinto uma grande sombra de infâncias outras que devo ter tido, aonde? Nas tribos Tabajaras? Na África? Numa ancestralidade indefinida, tisnada pela colonização?

As palavras, feito a chuva pasmada de Mia Couto, trancaram-se no alforge do esquecimento, e um último pensamento me vem: Pablo Neruda enganou-se. Eles nos roubam tudo, poeta, inclusive as palavras.