A arte sempre foi um território de turbulências. Aquieta os inquietos, mas incomoda os acomodados. Aqui e ali a pauta de costumes tenta dar as cartas no pantanoso terreno na opinião pública. É quando as máscaras da censura caem de vez. Sempre pensamos que o mundo evoluiu. Até que uma sombra se torna notícia.

Não faz tanto tempo que o Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, viveu cenas deploráveis contra a exposição ‘Queer Museu’. As manifestações eram conduzidas pelo MBL, um grupelho de extrema-direita que midiatizou-se no Brasil na época do impeachment. Infelizmente, acabou elegendo representações legislativas.

Acusaram a curadoria de promover blasfêmia contra símbolos religiosos e fazer apologia à pedofilia e zoofilia. A terra plana, todavia, sempre capota. Pouco tempo depois o mesmo MBL apoiou nas eleições presidenciais um candidato que fez a apologia pública e debochada da zoofilia e durante o governo exaltou a pedofilia dizendo ter “pintado um clima” entre ele e adolescentes venezuelanas. Quer blasfêmia maior?

A hipocrisia nunca foi novidade na história do mundo. Menos ainda entre os ditos ‘neoconservadores’. Essa tropa reacionária que nada tem de conservadora. O fato é que a arte erótica sempre incomoda, mas não é novidade. No século XIX, por exemplo, arqueólogos descobriram relíquias de arte erótica do Império Romano.

Sequer a arte naïf erótica é novidade. Mostras nacionais e internacionais aconteceram, acontecem e acontecerão. Ainda bem. O que me parece incompreensível é que, de fato, ainda perturba o sono de determinados setores da sociedade. Todavia, não seria a provocação uma das funções do fazer artístico?

Val Margarida é uma artista naïf de muito respeito. Conquistou espaços no mundo com talento, inteligência, afetividade e atitudes corajosas. Professora doutora da UEPB, é amplamente celebrada nos ambientes acadêmicos. Aliás, seu reconhecimento na área da Educação extrapola as fronteiras da Paraíba.

Acompanho a artista Val Margarida nas redes sociais há muito tempo. Freireana convicta, nunca perde a oportunidade de afrontar atitudes opressivas. Suas posições são bem definidas e merecem todo reconhecimento. Desde que começou a produzir uma série de pinturas eróticas, entretanto, sinto que inquietou alguns ambientes.

Li um ensaio do jornalista e crítico Oscar D’Ambrósio, da Associação Internacional de Críticos de Arte, que traz uma ponderação necessária. Em catálogo da também pintora naïf Analice Uchoa, o crítico levanta uma questão medular: “o que não é arte naïf.” Para ele, a arte naïf não deve ser chamada de “arte primitiva”. Também entende que não se trata de arte folclórica, tradicional, rústica ou provinciana. Ingênua? Jamais.

Aqui na Paraíba aprendemos a conviver com a genialidade de Alexandre Filho. Um artista naïf internacionalmente reconhecido que já vendeu tela até para John Lennon. O poeta e crítico Amador Ribeiro Neto vê na obra de Alexandre Filho a incorporação de elementos da Pop Arte. Uma amplitude de singularidades, um plano de releituras que observo também nas telas de Val Margarida.

Se mergulharmos especificamente na sua “série erótica” percebemos que ela traz para o debate a necessidade de desconstrução pedagógica do patricarcado. Precipuamente quanto ao silenciamento histórico da condição feminina. Aprendeu a derrubar muros e nos convida para repensar os horizontes da sexualidade no âmbito da condição humana. Percorre caminhos do Antigo Testamento para impor um debate necessário sobre racismo estrutural. Um Adão preto desnuda o que a Bíblia trata como metáfora do pecado. A artista descoloniza a noção de culpabilidade cristã. Traduz o prazer sem as cores do sacrilégio. Na verdade, é de amor que ela fala em suas telas eróticas.

Val conduz para os seus cenários uma estatura humana fora dos padrões fitness. Ela faz das representações do corpo um instrumento de prazer, rebeldia e múltiplas linguagens. Um contraponto ao que predomina nas contas do Instagram. A representação do feminino predomina e sensualiza, mas extrapola os sentidos do erotismo.

Ao trazer sua arte para as redes sociais, questiona a “família padrão margarina”. Aquela que aniquila identidades na busca pela padronização da beleza. Val Margarida optou pelo confronto. Em sua guerrilha cultural vai ocupando os campos grilados das formas diversas e nefastas de colonização do outro.

Rompe definitivamente o falso discurso da ingenuidade no universo naïf. Se nega a repetir fórmulas prontas ou copiar seus mestres. Derrama suas inquietações enquanto demonstra as infinitudes do campo figurativo. Diz um sonoro não ao espetáculo grotesco dos oportunismos patológicos. Traz a pimenta para dentro do acarajé e customiza a configuração das imagens.

Não sei até que ponto podemos separar a artista da educadora. Também em suas telas Val Margarida propõe um olhar reflexivo sobre a sociedade contemporânea. Um cenário de maçãs do amor e brincantes aprumados, mas também de violências culturais que aniquilam direitos e asfixiam a diversidade humana.

Finalmente, a caminhada artística de Val Margarida não se resume ao naïf erótico. Suas atitudes não se esgotam na irreverência. Em interpenetrações de formas e conteúdos ela nos convoca para ações públicas. A exemplo do projeto “Ateliê Aberto” que desenvolve na Universidade Estadual da Paraíba, em Campina Grande. Nesse projeto ela resgata um pouco de Hélio Oiticica dizendo que “o museu é o mundo”.

 

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Diário de Vanguarda