“A página em branco é envenenada. O livro que não conta nenhuma narrativa mata. A ausência de narrativa significa a morte.” É o que nos conta o búlgaro Todorov no livro “As estruturas narrativas”. Lembrei desse texto ao receber o convite para saudar a caminhada na vida e na literatura de um grande amigo. Afinal, a vida e a obra literária de Antônio Mariano são aço do mesmo espelho.
Para ele, a vida e seus arredores, a literatura e suas quitandas, os medos e os saltos no abismo, a poesia e a prosa. Enfim, todas as narrativas possíveis sobre sua trajetória e sua obra são estações do mesmo infinito. Pelo tanto que conheço da sua história, todas as forças que fazem pulsar sua existência caminham lado alado. Sem hierarquias e sem disfarces. Há uma interpenetração permanente de motivos nas suas lutas cotidianas. Tanto quanto na sua permanente esgrima com a palavra.
O esmero com a linguagem literária afia suas navalhas no rigor dos princípios que desenham o seu caráter. Mariano é um cidadão íntegro realizando o exercício integral da literatura. Bom prosador, bom poeta e um ensaísta perene das vozes silenciadas. Ele exercita uma permanente disputa com o tempo. Opera uma busca permanente de superação das próprias vitórias.
Mariano cumpre a sina de todo escritor. Da maioria, pelo menos. Começou a experimentar a linguagem enquanto possibilidade criativa ainda na adolescência. Ou seja: na medida em que experimentava a vida foi preenchendo a página em branco – da qual fala Todorov – com as tintas impiedosas de uma permanente aventura estética. Para ele, seja na prosa ou na poesia, a exatidão é um ponto de partida.
Ainda adolescente, queria ser letrista e cantor de MPB. No vigor da juventude, aos vinte anos lançou seu primeiro livro. Gozo Insólito já alinhava suas convicções diante dos desertos que cercam a jardinagem poética. Desde sempre soube caminhar por entre os canteiros mallarmaicos que nos colocam de joelhos, encantados diante da palavra flor.Aquela que, segundo Mallarmé, nunca está no buquê.
Na vida, sempre se entregou por inteiro. Formou-se em Artes-Cênicas na Universidade Federal da Paraíba. Cumpriu com paciência (e às vezes sem paciência alguma) a vida de barnabé. Isso depois de ingressar no INSS via concurso público. Ao mesmo tempo, publicou livros. Produziu e apresentou programas de Literatura na TV Câmara.
Nos bares e restaurantes da cidade, desenvolveu o projeto Tome Poesia, onde desafiava amigos e amigas poetas para uma orgia lírica diante de uma plateia sempre muito antenada. Depois esticou a corda chamando o povo da prosa. Foi quando o programa se transformou em Tome Poesia e Tome Prosa. Recentemente realizou a mesma experiência em seu canal no Youtube onde se mostrou muito respeitado dentro e fora do Brasil.
Com tais ações literárias proporcionou ao seu públiconoites de puro deleite. Coisa dessa gente que ama com devassidão os escambos diversos nos arredores do livro e da literatura. Seu projeto migrava por lugares poéticos como o restaurante Sagarana e o Parahyba Café. Verdadeiros santuários de heresias que ainda hoje habitam a nossa memória.
Nosso poeta também foi editor do Correio das Artes. Aliás, um editor com uma leitura muito apurada e sensível da arte e da literatura contemporânea. Sempre teve um olhar generoso para com as pautas silenciadas. Seja na literatura ou na vida. Deu voz aos emergentes sem esquecer os que merecem todo o reconhecimento.
Juntamente com os poetas André Ricardo Aguiar e com o saudoso amigo José Caetano, criou o Projeto Editorial Trema. Foi onde publicou escrtores como Magno Meira, Fransued do Vale, José Rodrigues e Rodrigo de Sousa Leão. Desta guerrilha editorial compartilhada nasceu também meu primeiro livro solo, O Guardador de Sorrisos, lançado em 1998.
O Antônio Mariano escritor, poeta e prosador, sempre preservou alguns princípios determinantes na sua caminhada. A coragem sempre foi o barco, o oceano, o vento e seu jeito de navegar. É dono de uma admirávelhonestidade intelectual, um aguçado senso crítico esempre opera com a dignidade natural de quem respeita quando exige respeito.
Antônio Mariano é um erudito distante, mas muito distante dos palcos da vaidade. É simples e ao mesmo tempo complexo em todos os sentidos. Respira e transpiraexatamente o que é. Não vive de pose. Não faz concessões para se manter na ribalta. Nunca se cala diante de uma injustiça ou de um poema raso.
Foi um dos fundadores do Clube do Conto da Paraíba, juntamente com Maria Valéria Rezende, Marília Arnaud, André Ricardo Aguiar e as saudosas e eternas presençasde Dora Limeira, Geraldo Maciel e Ronaldo Monte.Mariano é, antes de tudo, um estudioso permanente da literatura e da arte.
Mergulha sempre sem escafandro em busca do ouro escondido entre as rochas. Sempre encontra o que pode e deve ser lapidado. Por isso, quando escreve, transforma pedras em pepitas. Respeita o rio para reconhecer a natureza das suas águas. É assim o homem e da mesma forma o artista que desenha o mundo e a condição humana com palavras.
Sempre leio algumas definições da sua escrita nas palavras de Paulo Henriques Brito, José Paulo Paes, Hildeberto Barbosa Filho e outras personalidades da literatura brasileira. Todavia, destaco as palavras Nelly Novais Coelho, ensaísta e crítica literária. Para ela Mariano é “visceralmente ‘sintonizado’ com o lado escuro e real do cotidiano em que predomina o desvalimento, a ternura sufocada, os desencontros dolorosos que levam a frustrações profundas.”
Nelly Novaes Coelho é um dos nomes mais relevantes da história da crítica literária brasileira. Faleceu em 2017 aos 95 anos. Ao escrever sobre a poesia de Mariano, parecia antecipar seu olhar sobre o romance “Entrevamento”, publicado pela Kotter em 2021 e que brevemente deve ser publicado também em Portugal com o título “O que eu não sabia da escuridão.”
“Entrevamento” antecipa nos anos 80 alguns temas caros aos nossos dias. A exemplo da misoginia, da transfobia edo feminicídio. Uma trama ambientada numa João Pessoa ainda orgulhosa do seu bucolismo. Mariano construiu personagens que transmitem a cara e a coragem da nossa geração. Soube tecer a revelação de muitos silêncios e muitas sombras. Percorreu a medida do homem comum. Opoderoso “Zé Ninguém, identificado por Reich.
Li o romance como se fosse um roteiro de cinema. Sentindo no rosto o vento que sopra apressado na descida desembestada de um ônibus da Transnacional na Ladeira do Rangel. Um livro ambientado em dois tempos. Com os mesmos personagens trágicos dos nossos dias. Uma escritacom os pés plantados nos anos 80. Ao ler o romance de Mariano lembrei do Marcel Proust que li na juventude vivenciando as últimas cenas do século XIX.
Na poesia ou na prosa de ficção Antônio Mariano parece não temer as tempestades. Observem o seguinte texto do livro “O dia em que comemos Maria Dulce”: “Era a primeira vez que aparecia em público desde que perdera o marido, seu pranteado Jailson. Apesar do luto, estava impressionante naquele vestido de fina confecção, escravo dos ventos do Atlântico, o xale perigoso dominando o cavalheiro pelo pescoço.” (do conto Observação interrompida sobre as aranhas).
No livro Guarda-chuvas Esquecidos, publicado pela editora Lamparina ele também abriga tempestades. Veja o poema “Nunca mais” (pág, 95): “Chora a tarde na chuva/ e és bonita sem dúvida,/ epiderme traindo arrepios,/ cabelo úmido (véu) no rosto,/ blusa branca apagando-se no corpo,/ peito sem sutiã./ / Nesse encontro a perder de vista/ te levo flores de nada/ (mãos que abanam a distância)”.
O poeta Mariano, o contista Mariano e o romancista Mariano são opostos no campo da semântica. Cada qual tem seu rosto se considerarmos o ponto de vista do estilo.Entretanto as escolhas temáticas se aninham entre as marcas que o olhar do menino que via o mundo a partir da Ilha do Bispo aperfeiçoou no homem que escolheu incomodar-se com a naturalização das mazelas do mundo.Sua obra inteira lida com as pequenas e grandes tragédias do cotidiano.
A metalurgia inventiva de Antônio Mariano é o vetor e as vigas de uma ponte entre a vida propriamente dita e o artesanato lisérgico da literatura. Ao celebrar sessenta anos de vida e quarenta de literatura, ele nos mostra que tudo isso é apenas o começo. O começo de uma nova era que mantém intacta a velha ousadia que o impulsionou a lançar oito livros numa só noite de mais um dia 20 de agosto, de tantos que ainda virão.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.