Era mais uma daquelas tantas noites comuns, no município de Aguiar, a casa preparando-se para o repouso, o silêncio tomando conta de tudo, a luz ainda acesa no seu antigo quarto de dormir.

Fez às pressas suas orações, deitou-se, pensando que o único perrengue do dia seguinte era a sua vez de fazer a faxina. Faxina naquela casa grande, onde vivia com seus oito irmãos bagunceiros não era moleza. Tentava de todo jeito fugir das suas faxinas, e, quando não era possível , cuidava de enrolar, de fazer tudo meio por cima, só pensando na hora da completa liberdade.

Dormiu bem. Se os sonhos vieram, não deu conta deles. O dia seguinte,sem nenhum aviso, a transportou para um mundo completamente diferente do seu mundo de Aguiar.

Acordou, abriu os olhos, e de pronto recebeu um escuro tão absoluto, tão impenetrável, que seu coração começou a bater, como se fosse um cabrito a atropelar seu peito.

Ergueu as mãos, tocou nos olhos e percebeu que estavam normais, abertos, sem dor, mas o escuro era a única força terrível diante de si.

Esperou que aquilo fosse um pesadelo. Voltou sua cabeça para as várias direções das paredes do quarto, onde estavam fotografias e recortes das suas bandas preferidas dos anos oitenta. À frente da sua cama, sabia, estava uma foto grande do RPM, sua banda

Do coração.

Nada. Não via mais as suas fotos queridas. Tocou a cama, sabia que estava no quarto, mas somente o escuro gritava com ela, um grito longo, rouco, ininterrupto.

Foi quando ela mesma gritou, sacudindo o desespero em palavras que não faziam sentido. – “Mãe, eu estou cega! Estou cega”!

A mãe veio rápido, viu a filha descabelada, olhos arregalados, e supôs que ela estivesse em transe. Colocou a mão diante dos seus olhos, mas quase podia tocar no desespero da jovem, os olhos inertes, abertos para o nada.

Sem qualquer aviso, de um dia para o outro, Ana Lúcia havia ficado cega.  Agora, era preciso correr contra o tempo. Buscar apoio médico, recuperar a visão daquela jovem saudável, cheia de alegria, no topo dos seus vinte anos.

Os pais não perderam tempo. Vieram para Jo  ão Pessoa onde o oftalmologista viu os olhos da jovem e apresentou seu diagnóstico inapelável e estranho: Sub luxação do cristalino”.

Aquelas palavras bizarras reboaram nos ouvidos dos pais e da filha como se fossem pedaços de uma pedra desconhecida. O que significava aquilo?

Com seus olhos abertos, Ana Lúcia interrogou o escuro, mas só pôde voltar seu rosto para as palavras inapeláveis do médico: “Por uma má formação genética, ela desenvolveu uma sub luxação do cristalino, que vai forçando e destruindo os órgãos internos dos seus olhos. Tudo começou na sua infância e agora não há mais o que fazer. Ela agora é uma pessoa cega.

O luto veio rápido. Ana Lúcia deitou-se em sua cama e deu adeus para sua vida tranquila, cheia de divertimentos simples, brigas com os irmãos, comidas gostosas da mãe, seus livros adoráveis que ela ganhava todos os anos nos natais da sua casa.

Agora era alimentação por soro e o profundo desespero, único visitante, na companhia daquele escuro intermitente.

Dois meses passados, Tomada por uma grande revolta, acossada pela força da sua personalidade marcante, Ana Lúcia saiu daquele torpor, chutou os lençóis para longe e disse: ‘Agora sou eu que terei de inventar minha própria luz”!

Não, ela não disse isso assim, com essas palavras, mas foi exatamente o que fez. Apoiada pelo amor e os braços dos pais, veio com sua família para João Pessoa, a fim de que pudesse lançar mão de tudo aquilo que permitisse que uma pessoa cega pudesse inventar sua própria luz.

Como se tivesse voltado das férias para sua antiga vida, Ana Lúcia empurrou o escuro para longe de si, aceitou a coragem, a alegria, e começou a engenharia de fazer sua própria luz. Aprendeu o braille. Conversou longamente com a bengala branca e compreendeu que ela seria sua companheira de andanças nesse novo mundo que se lhe apresentava. Estudou, estudou, estudou.

Fez amigos, namorou, tornou-se líder nesse novo mundo onde outras pessoas cegas sempre tiveram de inventar sua luz.

A jovem de Aguiar está hoje com 54 anos. Ao primeiro amor da sua vida, os livros que ganhava nos natais da sua infância, juntou outros amores eternos: O marido, os filhos, a família.

Aprendeu que fazer luz é um trabalho de várias mãos, e sobretudo que é preciso distribuir essa luz para outras pessoas cujos olhos deixaram de ver.

Formada em biblioteconomia, servidora da Universidade Estadual da Paraíba, um dos objetos atuais da sua paixão é o Brailiver, que empresta livros em braille para pessoas cegas que amam a leitura com os dedos.

Como tudo o que Ana sempre fez, com entusiasmo, responsabilidade e alegria, o projeto está crescendo, mobilizando muitos agentes e levando arte e conhecimento a muitas pessoas cegas.

Na nossa conversa com ela, fechou seu relato dizendo: “Eu tive o privilégio de viver duas vidas. A vida onde enxerguei, e uma segunda vida, onde aprendi que ser cega é enfrentar o mundo com as oportunidades que nos são dadas, com a garra e a coragem de compreender, que a vida, em muitas circunstâncias, é um grande milagre”.

Sim. Ana Lúcia, aos vinte anos, de novo, literalmente segurou sua vida nas mãos. Agora, Ana é um sujeito especial da Espécie humana. Primeiro leu livros com seus olhos, depois começou o gesto formidável de ver com as mãos e colabora para que muitas outras pessoas construam essa sinfonia de dedilhar palavras junto com ela.