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Poderia muito bem ser o título de uma canção, de uma novela curta, de um filme. Mas não. É apenas o título dessa crônica, tecida numa escrita cheia de sentimentos confusos, de palavras não ditas, de vomições conscientes ou inconscientes.

Juro que não sabia do fenômeno Taylor Swift até cerca de um ano atrás, quando minha neta me apresentou o trabalho da artista. Gostei daquela conexão entre nós, valorizei o apreço da menina por aquelas canções ora intimistas, ora cheias de alegria, numa voz que transitava com facilidade entre o simples e o profundo, o agudo e o grave, modelando emoções em estórias dos dramas cotidianos.

E durante todo o fim de semana passado, acredito que como milhares de pais e avós, fiquei suspensa numa espécie de corda de tensão, criada por uma geografia imaginária impossível, uma reta perfeita, unindo João Pessoa  ao Rio de Janeiro, mais precisamente, ligando Tambauzinho ao estádio do Engenhão.

Enquanto minha neta esforçava-se por fechar sua mala e partia para o show do domingo, num voo com atropelos e adiamentos, eu e ela já acomodávamos em nossas mentes uma bagagem incômoda: A partida irremediável e trágica de Ana Clara Benevides, morta à beira do palco, no show da sexta-feira, morta entre as duas primeiras canções de Taylor Swift, sufocada por uma mistura fatal: calor escaldante e emoção, muita emoção, emoção suprema.

No sábado e no domingo, enquanto acompanhava as notícias sobre a turnê de Taylor Swift no Rio, impelida por uma tristeza profunda, meditei muito sobre a juventude, sobre os grandes espetáculos de massa, sobre o fato imponderável e estúpido de que Ana Clara não mais voltaria para casa.

Pensei naquelas centenas de milhares de jovens, agora atravessados pela profunda emoção de verem sua cantora predileta, mas ao mesmo tempo marcados pelo sabor amargo da partida de Ana Clara. Centenas de milhares de jovens atravessados por dois sentimentos extremos: a emoção e a angústia difusa e estranha. Angústia difusa e estranha, difícil de ser retratada numa canção.

Pensei que o corpo sem vida de Ana Clara era o grito agudo e urgente de uma denúncia clara: Os grandes espetáculos de massa, produzidos por empresas prontas a auferir bilhões de dólares, convertem-se em desumanas máquinas registradoras, mercantilizando a a relação sagrada entre fãs e celebridade, reduzindo drasticamente as estratégias do cuidado, do zelo, do estabelecimento de condições dignas de conforto e bem-estar mínimos para os compradores dos ingressos.

Pensei que sem palavras, o corpo de Ana Clara, caído à beira do palco, era uma denúncia aguda de uma engenharia macabra: O estádio do Engenhão todo fatiado em zonas mais caras, zonas de custo médio e zonas mais baratas, nem tão baratas assim. Quanto mais perto do palco, quanto mais comprimidos junto às grades, mais caros foram os ingressos. Era como quisera Ana Clara: Estar junto à grade, tendo uma visão privilegiada das coreografias e da performance de Taylor Swift.

Imaginei, enquanto a jovem era levada ao hospital Salgado Filho, a denúncia clara impressa no seu corpo que morria. A denúncia da proibição estúpida de não se levar água para dentro do estádio. A estratégia de colocação de tapumes nas entradas e saídas de ar, a denúncia das placas colocadas no chão, promovendo   acidentes e queimaduras nos jovens fãs.

Enquanto a família era avisada sobre a partida irremediável da jovem, eram expedidas medidas de proteção dos jovens, pelo Ministério Público, pela Prefeitura do Rio, pelo Ministério da Justiça. Senti mágoa profunda e um pouco de alívio nessa hora. Até quando as ações protetivas somente virão depois das tragédias?

Não consigo aceitar o fato de que Ana Clara não vai mais voltar para sua casa, para sua faculdade, para sua vida interrompida de maneira tão estúpida.

Eu agora só quero abraçar minha neta, sentir seu cheiro bom de água de rosas, assar para ela um pão com requeijão, tentar amenizar nossa angústia de fundo com palavras leves, conversas aparentemente sem importância, sabendo que cada uma de nós duas pensa nos pais de Ana Clara, com seus abraços e beijos recolhidos, guardados, comprimidos no âmago da dor de nunca mais serem abraços e beijos.

E aqui deixo uma nota final aos leitores. Essa crônica foi escrita a um mês, em 21 de novembro. Cada palavra escrita nasceu no centro da angústia e da gratidão que eu experimentei naquele dia, por poder abraçar minha neta, fazer com ela a primeira refeição em nossa casa, depois da sua chegada. Deixo aqui minha homenagem à juventude de Ana Clara, meu abraço imenso aos seus pais, minha revolta por estarmos num mundo onde os grandes espetáculos não são somente alegria e fruição, mas um contraditório encontro entre lucros e tragédias.