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Dizem que a memória é branca, só algumas vezes ganha uns tons. A minha tem cor de papel, pode ser amarelado, vá lá. E cheira. Os cinco sentidos ganham então uma ambientação, prontos para um resgate. Digo isto porque virou moda citar fatos a respeito de gente. Daí, quando invento de me buscar, cavar nas reminiscências, só encontro livro. Livro e leitura. Nos primeiros lampejos, José Lins do Rego. Eu li Menino de Engenho quase de uma talagada, mel dos bons, daquele que você acha que o que está lembrando é mais seu do que o personagem Carlinhos. Não é isso que faz a melhor literatura? Tornar o que é dos outros nosso. Foi a mesma coisa com o Lobato, um dos itens que virou fato corriqueiro. Obra lida, obra domada. Só minha. Sítio.

Lá vem mais memória. A cor, o tom é meio pastel. Cor de uma gaveta. Meus primeiros livros amontoados feito um jogo de dominó, combinados. Toda biblioteca deve começar assim, humilde, o rastro do leitor. Dei vários apelidos a esta gaveta: caverna, limbo. Chamava assim, de estimação. Entrou muito livro nesta gaveta até dar lotação. E procurar outro cavadouro. Até lembro que o primeiro poeta a ter entrado por lá foi o Drummond, naquela ediçãozinha do Literatura Comentada. Depois outros e outros. Mas o itabirano era a base. Me fez lembrar outro fato, anterior a essa chance de ir empilhando livros. Os livros da família, mais precisamente, dos avós. Bote mais cor amarelada, quase com o amarelo de uma réstia de sol. É que vi o Vidas Secas numa edição de papel jornal, dando sopa, num quartinho dos fundos. Ninguém ia lá. Coisa de guardados de um tio. E o velho Graça não me deu ainda aquele estalo, mas nunca esqueci a sequidão da descoberta.

Cor é uma entidade da memória, agora sei. Do amarelo-andante, vem a imagem do carteiro me entregando pacotes generosos em peso e medida, os livros do círculo do livro. Antes, numa revista, tínhamos uma ideia do que pedir. Eu pedia mais Agatha Christie. Queria o mistério a todo custo. Mas algumas coisas eram bem claras pra mim, e foi se firmando, dando seiva ao leitor que hoje sou. Como o seguinte fato: leitor se mexe. Não pense que não. Quando se quer ler, lê-se em todo canto, em movimento, em posição fetal. Li Eça numa viagem de trem e Machado em fila de banco. Antes de chegar à estação ou ao caixa, guardava o livro para ler quando pudesse.

Há fatos de cores mais esmaecidas. Por exemplo, como não pude devolver certos livros. Não é culpa minha. Talvez, por uma questão de destino, livro escolhe dono. O empréstimo foi firmado por uma confiança, mas quando o dono apaga os rastros, some, ganha o mundo. A quem devolver. Na dúvida, guardo o livro. E livro guardado vai adquirindo parentesco. Vai ficando como irmão, primo, o que for. Um belo dia, ele tem a nossa marca, as nossas impressões. Uso capião, uso copiado.

Uma cor que não abandono, cheirar livros. Penso que isso foi cultivado com obras novíssimas, saídas da tinta, do útero da máquina. Mas voltei a ter a libido de abrir livros velhos no sebo. O ato é aceito, afinal, somos ratos. Para roer é um pulo. Mas fico no cheiro. Fato. É como uma aproximação, uma sedução. E parece até dizer mais da gente. Como que dizendo: eu estive desabrochando em outros narizes. Tenho pólen. Daí, cheiro livro. Alguns até não são lá essas coisas, mas a curiosidade é maior.

Opa, um clarão, mais resquícios de memória. Para você que queira perguntar mais de mim, com perguntas meio interrogatório, como quem zapeia o instante, aí vai. Sim, fato azul, meu primeiro poeta foi mesmo Drummond. E sim, vermelho, li Dante em condições infernais. E tenho toques, tocs, então está valendo, vou pra livraria com espírito de fiscal, quero o livro tal, íntegro. E para o resto dos dias brancos do ano, tenho o mesmo número de fatos sobre o ato de ler. Mas isto só lendo com a vida. E ela segue em novas cores.