Já faz oito dias que não tomo café. Não, vocês não leram direito essa frase. Uma frase banal, oito palavras apenas, enfeixadas numa curta linha. A gente sempre lê com ligeireza o começo de uma crônica, de um romance, de um poema. É como o primeiro passo dado ao sair de casa, como o gesto automático de tomar o elevador que nos levará à nossa sala de trabalho.
Leiam agora com calma essa minha frase: Já faz oito dias que não tomo café. Sintam o peso das palavras, a esticarem-se no fio das horas, dos dias, a tentarem alcançar a trama última da caneca de café, do sabor inigualável do líquido a escorrer por minhas papilas gustativas, a descer pela minha garganta, informando ao meu cérebro que o primeiro protocolo do dia estava sendo cumprido.
Deixei de tomar café por exigência de um tratamento de saúde. Algumas frases ditas no consultório médico, e foi como se se arrancasse sem aviso, o longo bolsão de tempo em que tomei café, anos e anos em que minha manhã só começava de verdade após o cálido toque da xícara em minhas mãos.
Ao modo de Proust, com seus deliciosos biscoitos Madeleine, vasculhei na memória pelos primeiros cafés tomados, ainda na primeira infância. O cenário é a pequena cozinha de casa, no alto sertão de Pernambuco, a alegria dos pássaros, indiferentes ao frio cortante do dia amanhecido. Um café fraco e doce, acompanhado com bolachas canela, foi, posso dizer, a minha alfabetização para o cultivo desse hábito de tomar café.
Aos 25 anos, ao deixar a casa dos meus pais, inventei o meu próprio jeito de fazer café. Um café forte, entre o amargo e o adoçado. Foi muito tempo depois que deixei de adoçar o líquido, e, passei a experimentar uma relação ainda mais prazerosa com o hábito de beber café.
Esses oito dias têm me ensinado coisas. A primeira lição é a da abstinência. É certo que algumas abstinências são necessárias, outras, não devem ser cultivadas. Entre sonolências e leves dores de cabeça, pensei que outras privações conscientes ou inconscientes foram se impondo à minha vida.
De repente me pergunto por que parei de escrever crônicas. Porque tenho como que uma escrita suspensa, fenômeno que começou desde a pandemia, quando as palavras, sem aviso, rejeitavam o ato de me sentar, ligar o computador, abrir um documento em branco, e assistir à evasão silenciosa das palavras, estas senhoras caprichosas, esperar em vão, o fluxo contínuo da escrita, desistir enfim, sob o fracasso da crônica anunciada.
Sim, a abstinência do café me tem falado sobre a experiência do desapego, me tem permitido realizar um inventário das muitas coisas ou hábitos dos quais já me desapeguei. Há porém, certas abstinências que são danosas e não devem ser cultivadas. Desse meu inventário, compreendi que não posso me abster de dizer algo a partir da minha escrita. A escrita melhora a leitora que há em mim e pavimenta o solo onde eu possa cultivar, todos os dias, o hábito de escrever.
Foi por essa razão que recebi com alegria, o convite para fazer parte do #Diário de vanguarda como uma das colunistas.
Sei que a primeira crônica não é das melhores. Uma espécie de café fraco, quem sabe um primeiro lugar incerto por onde forço o cimento duro da abstinência e começo a escrever.
Vou experimentar uma conversa amena , outras vezes uma fala reflexiva, minhas impressões sobre o tempo tão complexo em que estamos metidos, quem sabe também falarei sobre livros, descobertas científicas…
é certo que haverá dias em que falarei sobre a falta de inspiração, como num dia, quando eu era colaboradora de A União, e me peguei, meia hora antes de enviar a crônica, sem nenhuma inspiração. Preenchi a crônica com essa ausência, com essa revolta pelo completo sumiço das palavras, com duas páginas de escrita de coisa nenhuma.
Que esse dia nunca chegue no #Diário de Vanguarda
Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.