O tempo é o senhor da vida. Somos passageiros de um barco que navega nas águas do rio-tempo para um destino ainda ignorado. Somente uma coisa é certa: a de que em algum momento desceremos em um porto à margem do tempo, enquanto o barco seguirá a sua viagem misteriosa. O tempo tudo muda. Nunca nos banharemos duas vezes no mesmo rio. Esse princípio que implica num constante movimento é algo angustiante e, ao mesmo tempo, consolador, pois sabemos que nada é definitivo, nem a dor, nem a alegria, nem o sim, nem o não. Paremos de indagar o que o futuro nos reserva, disse Heraclito, e recebamos como um presente o que quer que nos traga o dia de hoje.
Meus irmãos, meus parentes e amigos, nesse instante eu gostaria de dizer que somos todos irmãos, se não filhos do mesmo pai e da mesma mãe carnais, mas do mesmo espírito do qual deve ser composta a matéria do tempo, o mesmo planeta Terra, o mesmo chão. Meus irmãos, não é para falar de filosofias vãs que eu uso a palavra. É para falar da nossa mãe Maria que viveu cento e um anos de vida. Quantos de nós terá a felicidade de viver tanto? Quantos de nós terá a alegria de dizer à maneira do poeta, “meninos eu vi”. Eu olhava para a nossa mãe e via as marcas que o tempo foi caprichosamente colocando sobre o seu corpo, os seus cabelos brancos, os seus passos lentos. Eu olhava para a nossa mãe e me vinha à lembrança de que essa mulher que ficou tão frágil já foi o oposto. Eu olhava para ela e me lembrava das muitas vezes em que a vi cantando, cantava sempre e diariamente, canções que nunca ouvi no rádio ou em disco ou em boca de outra pessoa que não fosse a dela. Cantava ao seu modo peculiar, e acho que até mesmo inventava as canções que entoava. Eu olhava para ela e me vinha à lembrança a ternura e a abnegação com que se dedicava a cuidar dos seus filhos e também dos seus netos, bisnetos e de todos os parentes que um dia precisaram dos seus cuidados. Eu olhava para ela e via estampado em seu rosto o próprio rosto do tempo.
Meus irmãos, cento e um anos. Nada mais precisa ser dito. Pelo olhar da nossa mãe passou a história do século anterior. Nascida em um tempo em que sequer havia luz elétrica em Cabaceiras, atravessou todos os fatos e todas as mudanças resultantes para o bem ou para o mal, viveu momentos de alegria e de dor sem jamais perder a esperança em um futuro melhor, como se a sabedoria sedimentada em seu espírito pela ação do tempo estivesse a lhe dizer que sim, tudo está em movimento, tudo muda, tudo se alterna como o frio e o quente, como o alto e o baixo, como a roda da fortuna girando eternamente em torno de nossos desejos, de nossas vontades, até mesmo girando independente da nossa vontade, nós que pensamos muitas vezes que somos os atores principais desse teatro chamado vida, quando apenas somos coadjuvantes de um espetáculo que sequer conhecemos o roteiro.
Meus irmãos, hoje o dia é de alegria, sim, porque a vida há de sempre ser uma alegria, principalmente para nós que tivemos a sorte de olhar para o rosto da nossa mãe e dizer para os nossos filhos, “meninos, ela viu”: ela viu o tempo se projetando no século, ela viu os nossos cabelos se transformarem em brancos, ela nos viu crescer e nos viu multiplicar os seus descendentes, tantos que hoje podemos festejar à nossa mãe, a senhora do tempo.
Dona Maria viu os seus filhos Abilio, Carmelita, Carmencita, Isabel, Elizabeth, Marcone, Marco Aurélio, Adamastor e José Alberto nascerem e, invertendo a lógica do tempo e da natureza, partirem quase todos antes de chegar ao tempo da razão, assim como partiu o nosso pai, Joaquim, assim como partiram os genros que eram como filhos igualmente, Delma, Helenita, Edilson, Neném, todos que se emaranharam no labirinto do mistério que é a não existência, o não tempo, o não nada. Estamos todos aqui, agora, vivos em carne e espírito, visíveis e invisíveis, congraçados no presente. O tempo circular nos faz a todos presentes.
Mamãe, Alexandre e o seu invencível exército, as guerras que devastaram famílias ao redor do mundo, o grito de revolta rebentando as correntes dos escravizados, o sonho de Colombo que inventou a América, as navegações portuguesas por mares desconhecidos, os indígenas que anteciparam a visão do paraíso, Armstrong pisando o chão da lua, o bater de asas de uma borboleta que voou num jardim da China, uma flor que se abriu no quintal, tudo isso foi preciso para que estivéssemos aqui nesse instante, e para que pudéssemos dizer simplesmente: mamãe, nós te amamos.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.