Você sabe de que matéria é feita o tempo, Nonói? Essa é uma pergunta que Nínia, a personagem de Não se incomode pelo carnaval, a minha terceira peça de teatro, faz. Uma pergunta sem qualquer possibilidade de resposta prática, embora haja uma teoria possível para solucionar essa que é uma das grandes questões da filosofia e atualmente também da física, a teoria das cordas, que afirma a existência de onze dimensões no universo, todas elas, e a nossa vida inclusa, interligadas por vibrações de energia.

O tempo é o grande problema a ser solucionado, se é que há solução para isto que é ao mesmo tempo abstrato e concreto. Eu explico: abstrato, pois não sabemos do que é composto (por vibrações de energia?, como a teoria das cordas.  Por dimensão espacial?, como a teoria da relatividade?). O tempo é algo concreto em nossas vidas, e isso nós o percebemos em nossos corpos ano a ano. Um dia fomos bebê, um dia seremos cadáver. O tempo é, portanto, passível de ser dividido em três dimensões lineares: passado, presente e futuro. O tempo existe e nós o percebemos, mas, segundo Aristóteles, no Livro IV da Física, o tempo não seria algo em si e as partes do tempo não existem ou deixaram de existir (o passado), ou ainda não vieram a existir (o futuro), restando, portanto o agora (o presente) que não faz parte do tempo por este ser inextenso e não constituir partes.

O tempo é a grande chave da filosofia e também a grande angústia da humanidade, por que está a afirmar que tudo é finito, o bom e o belo, o bem e o mal, e sobretudo a vida que é nossa, e que nós buscamos de alguma maneira torná-la perpétua, sem imaginar que isso pode ser mais um castigo do que uma benção. A vida eterna pairando acima do tempo pode ser um sofrimento como o que vive Fosca, a personagem do romance de Simone de Beauvoir, Todos os homens são mortais. Nele, vê-se que Fosca teria bebido, ainda no século XIII, a poção que o torna imortal, e por isso mesmo condenado ao tédio e à falta de sentido da vida eterna. Régine, uma atriz que se apaixona por Fosca, encontra a solução para a sua angústia, a de ser imortal, mesmo que seja na memória dele.

Lembro o dia em que eu estava no Pelourinho, em Salvador, havia bebido algumas doses de cachaça com cravo e canela (não era a poção da imortalidade, mas do prazer) rindo de alegria com os meus amigos, quando ouço a voz do poeta cantando no rádio: a vida não para. Lenine me transportou para outra dimensão de mim mesmo, a dimensão do tempo. Paciência.

O tempo é também uma questão poética. Não serei nem terás sido, diz Caetano Veloso na sua Oração ao tempo. Ou como escreveu Gilberto Gil em Tempo rei: Tempo e espaço navegando todos os sentidos.

O tempo é, enfim, matéria da arte e da memória. Eu penso que talvez seja por isso que eu amo ler biografias, e, sobretudo, autobiografia, a pessoa falando de si, se colocando no mundo. Mesmo uma pessoa que tem uma vida pública, como, por exemplo, Preta Gil, que acaba de lançar o seu livro, Os Primeiros cinquenta anos. Mesmo essa pessoa que a mídia faz parecer tão próxima, tão nossa conhecida, alguém que de tão presente no cotidiano das redes sociais parece nada ter a nos dizer que não saibamos, mesmo assim, ao ler o seu livro de memória o que lemos é Preta Gil falando de uma personagem chamada Preta Gil.

E por que uma personagem, se é a própria Preta que fala de si?, você poderia perguntar, e se você fizer isso eu te respondo com a frase pinçada de um outro livro de memória, essa da escritora Maria Valéria Rezende, no livro também recém lançado, Patricia Galvão – Pagu, militante irredutível. Diz Maria Valéria Rezende: Não há fronteira entre memória e imaginação. Ou por outra: não há fronteira entre persona e personagem. Um ator que representa é uma persona sendo personagem. Um não existiria sem o outro, da mesma maneira que você não existiria sem a sua memória. A memória traz o passado para o presente. É um jogo que tem algo de pirandelliano, personagens que buscam um autor para escrever a sua memória, ou ainda mais uma vez Maria Valéria Rezende: Escrevo para os meus personagens.

O jogo da escrita é fantasia mesmo que seja memória. Os cinquenta primeiros anos de Preta Gil indicam que hipoteticamente houve uma Preta Gil há cinquenta anos e haverá mais cinquenta, mais cinquenta e mais e mais e mais. Aqueles descritos no livro foram apenas os primeiros. O passado contado é invenção, literatura, poesia. Poderá ser real hoje? Poderá existir no presente? Cientificamente sim. Diz-se que a pessoa que viverá cento e cinquenta anos já nasceu. Pode ser Preta Gil. Posso seu eu. Pode ser você. Isto pensando num tempo projetado no futuro, que não existe, a não ser na quinta dimensão do universo, aquela em que o passado, o presente e o futuro estão unidos pela teoria das cordas, a quinta dimensão da memória. Ao final das contas, é o que nos revela a arte e a poesia, a memória pode ser a expansão da consciência.