Precisamos discutir a obra do artista SHIKO, mestre no traço, no desenho, na representação do real através de imagens gráficas. Sua habilidade no manuseio do lápis, do pincel, da narrativa desenhada já “ganhou o mundo”. De Patos, interior da PB, onde viveu por 18 anos, antes de se radicar em João Pessoa, zarpou para a Seul e Florença. Saltou das publicações no Twitter para o top da Graphic novel mundial e ficção da NetFlix. Sua obra tem se alastrado exitosamente. Seu trabalho já decolara desde as publicações impressas em editoras de vanguarda e proliferado no ciberespaço, até que migrou do papel para as telas do cinema. Uma verdadeira odisséia, desde a codireção do “bat-filme”, inocente e sensual “Lelê” (Shiko& Carlos Dowling, 2012), sem abolir dos flagrantesdionisíacos do cotidiano dos jovens outsiders nas quebradas da cidade.

       

Shiko já tinha feito vários trabalhos editados noformato gráfico das “bandas desenhadas” anteriormente, como a adaptação de “O Quinze” (Raquel de Queiros), o laureado romance gráfico-curta metragem “Lavagem” (2011), o premiado “Piteco Ingá – O azul indiferente do céu” (2014), “Morto não fala” (2018) e “Três buracos” (2019.

“Morto não fala”, “Três buracos” e “Carniça” são transmutações felizes e inovadoras no campo das artes visuais. A temática é sensível e ganha tratamento hiper-realista nos traços de Shiko, que desenha com cores fortes a violência, a misoginia, a selvageria masculina, a secura e aspereza do sertão. Faz igualmente uma fotografia urbana da solidão, tédio e melancolia, que espanta com transgressão. Mas não sem um toque de sedução, flash da beleza e matizes afetivos, eróticos, sentimentais. Shikoassume as dores das mulheres, escracha contra o assédio, o bullyng, a humilhação e o feminicídio

         

Sua fama, sucesso e reconhecimento vieram com o estouro de Carniça e a Blindagem Mística – A morte anda no mundo (2020), segundo ele, uma trilogia em quatro partes (como a Divina Comédia, de Dante Aliguieri). O primeiro volume, “É bonito o seu punhal” e o segundo volume “A tutela do oculto” sinalizam a simbiose e aproximação dos contrários, onde a violência e o místico se encontram. Nas telas, as expressões do insólito, do abandono, da vida líquida nos becos da cidade.

A narrativa dos quadrinhos de Shiko faz uma denúncia poética da violência, da criminalidade, daabominação machista do cangaço. Aqui a anti-heroína é fêmea.

Carniça flagra uma mulher cangaceira que escapa das armadilhas machistas e parte para o confronto, a guerra contra o macho-predador, a guerra também contra a opressão da sociedade patriarcal. A cangaceira pós-moderna atua como uma chefe de gang de assaltante de bancos. Um olhar rebelde, transgressivo, outsider nordestino que se garante por meio de uma estética visual sofisticadíssima, e domínio formidável na arte do desenho gráfico.

O resgate do cangaço surpreende pelo faro da modernidade expressa na sua imaginação criadora inspirada nas figuras sacras, o POP, rock’n roll, imagens urbanas, livros de bolso, filmes de ação, aventura e terror;daí a atração que exerce sobre os veteranos, siderados pela estética das revistas em quadrinhos e frisson do desenho animado, mas também sobre os jovens leitores e fãs adolescentes, desconhecedores da saga bélica nordestina.

Os textos nos balões, ágeis, sintéticos, minimalistas atualizam o gênero trágico que migrou da literatura, do teatro e do cinema, e se disseminou na obra mix e ultramoderna do design-animação. Não é algo fácil de se elaborar, considerando a necessidade de trazer essa sensibilidade técnica para o contexto do imaginário industrial.

   

Carniça e a Blindagem Mística retrata o universo da mulher negra que sobrevive no ambiente do cangaço. Éfeminista na sua essência pois coloca a mulher no centro da cena; ela é altiva, insubmissa, independente, cujo espectro encontramos na personagem Maria Moura(Raquel de Queiroz), de quem Shiko já fez “O Quinze”.Mas o universo de Shiko é pluralista, sacro-profano, erótico, carnal, paradoxalmente intimista e cosmopolita. O signo do feminino é hegemônico em sua apresentação da natureza humana. Antenadíssimo tem a ousadia de misturar Frida Khalo, Olívia Palito e a personagem da famosa tela “A moça com brinco de pérola”, e o faz com adereços e embalagens que se inspiram no pós-punk, na arte pop londrina e norte americana. Suas “Lolitas” são lindas, malvadas bem desenhadas, um pouco perigosas. Ecos da contracultura do século passado.

Sua arte transforma a brutalidade das relações através de imagens sedutoras, pois seus traços traduzem fidedignamente as emoções e sentimentos dos personagens. O gesto fotográfico de seu desenho é cru e seco, traduz o cotidiano neurótico e a ferida exposta do social em quadrinhos. Sem fronteiras explícitas entre o erótico, o sensual e o obsceno, sua arte não é moralista, e nada contra a corrente fundamentalista. Uma arte que não se submete aos preceitos morais da ideologia carola e bem comportada da família burguesa. Seus personagens são figuras que saltam da vida boêmia, da vida nua e crua. Vida vivida com amores bandidos, paixões arriscadas,relações passageiras, como num filme noir.

       

 

No cenário atual de renascimento da produção cultural em todos os níveis (literatura, teatro, música, cinema, quadrinhos, animação), após o confinamento da COVID, surge jamais um “novo normal”, muito pelo contrário”, emerge um novo “espírito politeísta” que inspira as artes transgressivas, e verdadeiras na assimilação e transfiguração das contradições sociopolíticas sob o signo da inteligência, ironia e sagacidade. Isto ocorre na grande arte, nos trabalhos consagrados ou em vias de reconhecimento; Shiko assim ocupa o seu lugar neste instante de “renascimento” da arte, que mira fundo nos olhos da tragédia racista, classista e misógina nacional com talento, coragem e tenacidade.