Ela acordou ainda dolorida. Parecia que uma noite de sono não era mais capaz de lhe trazer o descanso merecido. Antes de abrir os olhos, como quem traça uma estratégia de guerra, ela lembrara em lista de tudo que precisava fazer: desfazer a mala, cortar e embalar os doces e seguir para venda. O café da manhã era necessário mas sempre ficava pra depois. Ela sabia muito bem disfarçar suas perdas e cansaços, erguendo-se tão bela e sorridente que encantava por onde ia. Chegou ao ponto de vendas, encheu sua cesta, e iniciou a missão de adoçar o mundo, agaranhando o necessário para fechar o mês.

– Agora não viu querida, mas pra frente. Volte que eu compro…

Seus doces artesanais eram mais que seu trabalho. Cada bala embalava o sonho de ser feliz, amada, e nunca mais sentir tantas ausências. Mas poucos percebiam que lutava contra o amargo da solidão através do suor salgado da lida. Para uns, uma sobremesa; pra ela, a esperança. Cozer açucarados lhe abriu os olhos e as asas e, inevitavelmente, lhe alargou as costas e engrossou as mãos. Cuidava dos seus rebentos sozinha sem ter quem cuidasse dela. Resoluta, não se dava a chance de ter tempo pra chorar. A festa estava apenas começando.

– tá de quanto?

– 5 qualquer um.

– vige maria, faz 3 por 10 não?

O festejo reunia em uma tarde de alegria e regaço aqueles velhos conhecidos que celebravam o centenário de um antigo colégio, o mesmo que lhe negara o diploma. Alheios a dor da doceira, dançavam e diziam: “tão bela, tão inteligente, tão esforçada, ainda vendendo doces?” Sorridente, ela se apresentava de mesa em mesa, mostrando seus encantos em doces e simpatia. A primeira cesta se esgotara, era preciso pejar-se com guloseimas e resistência.

– se abrir paga? então abra pra mim…

Como abelha de pólen, buscava sorrisos e olhares para achegar-se aos brincantes. Alguns olhares denunciavam outros desejos. De boca vermelha, que sorria fechada, cerrava os dentes escondendo o azedo temor. Eles achavam que a compra do doce sovaria a conquista efêmera. Sábia, deslizante como a calda de suas balas, a doceira se esquivava sem dar liga, e seguia em seu afã. Mais uma cesta e o sol já se foi.

– eu gosto muito de doce sabe, sempre pego com a que faz lá em casa. esses estão pequeninos, conheço uma que faz melhor e mais barato. É tu que faz, né?

Alguns conhecidos vieram falar em nome dos velhos tempos de escola. Outros, desviavam dela como sua presença denuncia-se as injustiças da vida. Ela, doce andarilha, pensava nos filhos, contava o troco e disfarçava o latejo das pernas cansadas. Na última cesta enchida, sentiu o ronco do seu vazio. Era necessário terminar as vendas que precisam seguir em banho-maria. Sentou demorado. Eram as últimas balas do cesto. Lembrou dos outros trabalhadores da festa com olhares e sorrisos solidários. Ofereceu a eles seus produtos a preço populares, temperando a consciência, unindo todos numa mesma massa.

– pronto agora eu vou querer… vige, já acabou?

A doceira agradeceu a lua que iluminava seu caminho para casa. Silenciosa e satisfeita, sorriu lembrando os sons da festa. Amanhã, começaria tudo de novo: panelas a mexer, mãos à enrolar, as formas completar, corta, embala, arruma e sai. Doce, ela não sentia pena de si e nem amargurava seu viver. Deixou as louças a lavar e dormiu pesado.

 

Jéssica de Pádua é carioca de nascimento e potiguar por bem-querer, professora de arte da rede municipal de Natal e do Estado do Rio Grande do Norte,  especialista em música, literatura e teatro. Atua como encenadora do Coletivo Revestrés de Teatro Popular e militante feminista junto ao Mulherio das Letras Zila Mamede. Poetisa e jardineira nas horas vagas, mãe e surda nas horas cargas.