Cansei o dia com a esperança do cessar fogo, do recolher as mulheres rotas, alteradas. Olhos fatigados de pânico miram o céu de fósforo branco entre os escombros de Gaza. Maternagem órfã de suas crias. É noite quase outro dia. Pesam-me a impotência e o fracasso sobrepostos como as ruínas que tomaram conta de tudo que pudesse identificar a geografia de um país.

O alvo é o extermínio de um povo, de uma nação, que agoniza sob a fome, o terror e a indiferença. Veio-me a frase machadiana em suas tintas da ironia: “Aos vencedores, as batatas”: as pontas da estrela de Davi atingem pássaros sem asas.  

Resta-me irrevogável cansaço que não me faz carne os ossos. O que somos afinal? Caniços pensantes, é o que somos. Assim, a poeta tece as palavras como teia de aranha sobre o abismo, que se abre no espaço.  A noite avança e o terror não dorme, chego à janela e vejo as pálpebras da besta fechando-se sobre montanhas de escombros.

A poesia se mistura à tessitura dos sons de um manifesto: se não for para exaltar a paz, não cantem hinos, silenciem os violões e as flautas. Acendam os fogos e façam rugir todos os tambores para sobressaltar as garras dos mísseis insones.

Em busca de que algo para não sucumbir à desesperança, ampara-me, por sua natureza dual, a figura de Dioniso. A mitologia grega narra que quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou entre as partes a que era divina: somente essa poderia resistir aos carrascos da vida, aquela parte onde fica a sede do afeto e da coragem. O órgão onde é mais potente a energia da vida: Zeus pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso!

O filósofo-poeta Elton Luíz Leite de Souza explica a etimologia e a interpreta: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”. Quando nasceu a primeira vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como todo recém-nascido; ao renascer, porém, Dioniso saiu do coração sorrindo, em festa, na alegria do triunfo da vida: como arte de tornar a vida de novo nascente, nesta vida e não noutra.

Dioniso não representa apenas uma forma de arte, ele expressa a potência múltipla e heterogênea das artes, sobretudo a mais importante delas: a arte de reinventar a vida. Por isso, Dioniso é considerado o símbolo do triunfo da vida. Não o triunfo de uma vida sobre outra vida, como na competição desumana desse genocídio. Que Dioniso renasça em todas as infâncias destroçadas pelas guerras, e que o reconhecimento do estado da Palestina seja o triunfo da vida resistindo àqueles que a querem morta, nos vários sentidos que a palavra morte tem.

Minha poética se alia ao poeta da vida Manoel de Barros, quando declara sobre a função de sua obra: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, é o que pretende essa crônica grávida de Paz pela Palestina!

 

 

ISA CORGOSINHO é natural de  Brasília/DF, mas reside também em João Pessoa. Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Publicou o livro Memórias da pele (Venas  Abiertas,   2021).   Participou   de   várias   coletâneas: Coletânea Enluaradas I: Se essa Lua fosse nossa (Ser MulherArte Editorial, 2021); 1ª Coletânea de Poesia Mulherio das Letras na Lua (Ser MulherArteEditorial e In-finita, Portugal,   2021); Coletânea Enluaradas  II:   Uma   ciranda   de   Deusas (Selo   Editorial   e Sarasvati   Editora,   2021); Mulherio   das   Letras   Portugal   Poesia   &   Prosa (In-finita, Portugal   2021); Coletânea Mulherio   das   Letras   para   Elas (Amare   Livros   e   Ser MulherArte   Editorial,2021); Coletânea   Salvante   IV:   Entre   Eixos (Saravasti   Editora, 2022); Coletânea   Salvante   V:   Reminiscências   do   tempo   (Saravasti   Editora,   2022). Mulherio  das Letras  Portugal  Poesia &  Prosa (In-finita, Portugal,  2022); Coletânea  Enluaradas   III:   I   Tomo   das   Bruxas:   Do   ventre   à   vida (Enluaradas   Selo   Editorial, 2022). Coletânea Mulherio das Letras 2022. (AMARE Editora, 2022). Coletânea Tantas Palavras   (Editora   Sanhaua,   2022).   Coletânea   poéticas   Contemporâneas   –   uma cartografia da escrita de mulheres. (Brecci Books Editora, 2023). Coletânea Conexões Atlânticas (In-finita, Portugal, 2023). Autora premiada/1° lugar CRÔNICA. Coletânea NÓS – textos de  autoria feminina (Selo Off Flip, 2023).  Autora finalista CONTO destaque na Coletânea NORDESTE (Selo Off Flip, 2023).