Mário Agra/Câmara dos Deputados

Hoje as minhas ideias estão confusas e claras. Confusas e claras, tudo ao mesmo tempo agora. Me vem à mente a alegria, a festa desmedida por termos levado o presidente Lula à rampa e ao Planalto. A festa e a alegria desmedida por termos vencido o bolsonarismo, por podermos enfim respirar e retomar um país justo, marcado pelo respeito dos direitos e a indignação e a luta contra as desigualdades.

Teríamos comemorado cedo de mais? Pergunto isso porque tenho as mãos, o corpo, o pensamento, cheios de pedras, as pedras da crueldade extrema, perpetradas pelos que vestem colarinho branco, vivem sob a redoma dos mandatos, legislando ao sabor da vingança, da ideologia macabra, do ódio pelas mulheres, pelos mais pobres, pelos encarcerados.

E há uma pedra grande aqui, no meio das minhas ideias, uma pedra grande da qual nem sei se sei falar direito. A cena está no portal G1. A filha internada na UTI, sendo abusada pelo seu próprio pai. Nesses casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes a debulhadeira dos números é implacável. Seis denúncias por hora. 150 por dia. Cinquenta e seis mil ao longo do ano.

Mas há uma certeza, uma clareza nas minhas ideias: Sim, vivemos num país polarizado, um país que reverbera, na sua superfície e no seu âmago, o que acontece com o planeta inteiro. Não se trata somente da briga interna e temporária Lula/Bolsonaro. Trata-se do crescimento do antagonismo entre duas grandes forças: A força da extrema direita e a força das chamadas frentes democráticas. São dois modelos de desenvolvimento que se enfrentam, sendo que os extremistas têm pressa, coragem para solapar direitos, reformar constituições, torcer legislações, a fim de fazer valer a sua ideologia macabra.

Nosso país acha-se cindido por essas duas grandes forças. Enquanto ainda fazíamos nossa festa democrática, as forças de extrema direita reorganizavam seus flancos. Agrupadas no parlamento, distribuíam-se também dentro do novo governo. Pouco mais de um ano passado, o país vive o pesadelo e assiste perplexo à preparação dos retrocessos.

De forma ágil e descarada, a extrema direita, vestindo seus colarinhos brancos, criminaliza o aborto legal, num país onde as vítimas de feminicídio engordam as cifras da morte das mulheres, num país onde as estatísticas de estupro são uma ameaça assustadora. Um país onde um pai sente-se livre, para agir impunemente dentro de uma uti hospitalar, abusando covardemente da sua filha menor de idade, completamente indefesa. E eu me pergunto, lhes pergunto: qual é a cor da bandeira da maldade?

Como são essas mãos que engendram gestos tão deploráveis?

Vivemos um paradoxo dos mais incompreensíveis. A força democrática, eleita para governar, tem seus passos limitados,  é obrigada a exercitar um balé estranho, um passo à frente, dez passos para trás. É no parlamento que se faz governo. Governo de maioria. Governo de extrema direita, que vai conquistando espaços de poder e de desmantelamento das leis de garantia de direitos e justiça social.

A imprensa protesta contra a urgência urgentíssima das pautas do fel. Não compreende a pressa dos engravatados. Não, Não há mais tempo para os achacadores. A hora é para a ação. É preparar o solo para a nova colheita, cujos primeiros frutos, em outros países do mundo também se preparam.

Teríamos comemorado cedo de mais? Ou será que essa pergunta  já não faz sentido? Estaríamos nos preparando para uma nova grande síntese no mundo político/econômico?

O grande capital assiste e financia, ao longo da história da cultura, à distribuição dos poderes no mundo. Ora aceita conviver com forças sociais democráticas, ora acolhe, prefere e financia forças de extrema direita, elas que representam o alicerce do próprio capitalismo, dentro de uma aliança férrea entre lucro do capital, religião e exploração das forças de trabalho.

O capital tem pressa. O capital quer reorganizar seu mundo a partir de máximas simples: estado mínimo, arroxo salarial, fim de direitos sociais e leis protecionistas. A lista é muito maior.

O capital tem pressa. Prepara as ações de choque, de demolição, de reconstrução do seu mundo seguro, firme, extremamente injusto.

O símbolo dessa nova era, penso eu, é esse gesto macabro de um pai, dentro de uma uti, contra sua filha relegada ao silêncio forçado.