Leitor privilegiado, em dezembro de 2021 recebi o PDF de ‘480 poemas pretos + 3’ do poeta Justino Justino Justino. Poemas que se complementam e ao mesmo tempo não se revelam de imediato. Com um pé na Poesia Concreta, o poeta resgata algumas linhas eruptivas necessárias. Tudo é trovoada em seu território. Versos perturbadores que sacodem o cenário quase inamovível da poesia contemporânea. O que não falta nas suas mais de quinhentas páginas é a sedução para uma leitura ampla e desafiadora. Daquelas que não permitem o aconchego das linearidades. Poemas que desabrigam as almas aprisionadas nos curtumes silenciadores das confrarias.

Filho de paraibanos e nascido em São Paulo, Luciano Barbosa Justino (Justino Justino Justino) está radicado em Campina Grande desde a primeira infância. Sempre foi um atento observador do mundo, com suas opressões e encantos. É um “paraibano de tutano”. Cresceu no Zé Pinheiro – tradicional bairro popular de uma cidade que já foi mais cosmopolita. Professor da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, docente/pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade. Enquanto poeta, dispensa apresentações. ‘480 poemas pretos + 3’ é um soco no racismo estrutural e suas heranças coloniais. Um sopro de inventividade que nos ensina o quanto poesia é movimento, imagem, sonoridade, leitura e ruptura.

De posse do livro físico vejo um meteoro violando madrugadas. Uma colheita de contestações que não se rendem aos panfletarismos midiáticos. Poemas que apresentam os referenciais de um criador que se desafia verso por verso, palavra por palavra, caractere por caractere. Sinaliza as contravenções necessárias aos caminhos da invenção poética. Propõe-se um navegar autônomo, fruto de convicções erigidas sem mapas, ampulhetas ou bússolas. Tudo é aventura em Justino Justino Justino. Todavia, “uma aventura planejada”, como diria Décio Pignatari. Surpreende o livro e surpreende o poeta. Um escritor que define sua vinculação com as rupturas na poesia contemporânea brasileira. Devoto fiel, lembra um certo irmão Campos dizendo que já não faz a Poesia Concreta, mas “a poesia da concretude”.

O poema “a nobre fábrica de fêmeas” nos conta um pouco sobre o que há de revide, experimentalismo e denúncia no olhar antropocêntrico do autor:

NAS FAZENDAS DE FAMÍLIAS CARIDOSAS E CRISTÃS

em minas de carvão
e
fundições de ferro

em cortes de lenha
e
cana de açúcar

substituem, sem frescura, burros de carga
grávidas?, são chicoteadas como insolentes

sob ameaça de violação e açoite,
abrem inúmeras valas

– VEZ EM QUANDO UMA ARREGANHA UM PUTO


Tive a sorte e o prazer de contar com poemas de Justino
Justino Justino na coletânea “Horizonte mirado na lupa – cem poemas contemporâneos da Paraíba” que organizei para a editora Casa Verde, de Porto Alegre. Também considero um privilégio incluir seus poemas no blog Gota Serena (beraderos.blogspot.com), onde continuo reunindo a poesia paraibana de todos os tempos e estilos. Do cordel ao neobarroco. Já passamos de 200 poetas e nem de longe ainda é possível vislumbrar o fim do túnel, tamanha a efervescência histórica da poesia na terra de Augusto dos Anjos. Justino Justino Justino nos apresenta o que há de mais inovador na poesia paraibana das últimas décadas. A outra forte referência seria Arnaldo Xavier, também campinense e cuja obra precisa ser recuperada para as futuras gerações.

Podemos definir esse bardo como um desbravador raro na Poesia de Língua Portuguesa. Se aproxima de poetas como o angolano Helder Simbad e alguns poucos que ousam cruzar as fronteiras da desobediência. Carregam no deboche quando denunciam os ogros do mundo. Poetas que rompem “a cerca elétrica da língua”, como diz Antônio Carlos de Melo Magalhães num dos dois belos textos do posfácio, “(…) É poesia que se levanta em forma de ‘inquérito sobre os embustes do nome’, para romper a ‘cerca elétrica da língua’ e os ‘seus coliformes coloniais’, porque ‘universal é a fraude’. É poesia que quer cantar não o medo, mas o ‘afiado canto’.

Por fim, uma plêiade de memórias me invadiu na primeira leitura do livro físico. Memórias de reflexões continuadas que me acompanham através dos tempos. A exemplo do livro “Convergências – poesia concreta e tropicalismo”, de Lúcia Santaella. Para ela, “os Beatles rompem todos os esquemas de previsibilidade comunicativa usualmente admitidos. Ninguém diria, a priori, que um LP como Sgt. Pepper’s pudesse ser, como foi altamente consumido. Não é comercial.” Não digo que ‘480 poemas pretos + 3’ terá sucesso comercial porque esse não é esse o lugar da poesia. Todavia mesmo antes do lançamento o livro já demarca seu território e garante seu lugar na História da Poesia brasileira.