Praia do Porto - Baía Formosa
Foto: Edileide Vilaça

Na última quarta-feira (16), o Ministério Público Federal (MPF) determinou que a Prefeitura de Baía Formosa (RN) adote, em até 48 horas, medidas concretas para impedir o tráfego de veículos automotores nas praias do município. A ação emergencial visa proteger tanto a segurança de banhistas quanto o ciclo de reprodução da tartaruga-de-pente, espécie ameaçada de extinção e símbolo da fauna marinha brasileira.

O MPF exige o fechamento imediato dos acessos à faixa de areia e a criação de uma fiscalização móvel, com poder de abordagem e autuação. A urgência se justifica pelo aumento da movimentação turística no período da Semana Santa e Tiradentes, quando há histórico de uso intensivo das praias por carros, quadriciclos e motos — prática ilegal e extremamente danosa ao meio ambiente.

A Baía Formosa que os olhos nem sempre veem

Com mais de 26 km de litoral, Baía Formosa abriga ecossistemas de valor inestimável: dunas móveis, restingas, estuários e recifes, todos interligados por uma cadeia de vida que depende do equilíbrio entre o uso humano e a conservação ambiental. Entre as espécies que escolheram nossas praias para viver está a tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), que retorna às areias onde nasceu para desovar — geralmente entre os meses de novembro e junho.

Ocorre que os ovos dessas tartarugas são enterrados sob uma fina camada de areia. A passagem de veículos, além de destruir os ninhos, compacta o solo, inviabilizando futuras desovas. É um ciclo de morte silenciosa. Segundo ambientalistas, cada ninho destruído pode significar a perda de até 150 filhotes. E, pior: para cada mil que nascem, apenas um ou dois chegam à vida adulta.

O documento do MPF também ressalta que o tráfego de veículos nas praias põe em risco a integridade física de banhistas, em especial crianças e idosos, além de trabalhadores informais que passam o dia vendendo alimentos, artesanato e oferecendo serviços. Não é incomum ouvir relatos de quase-acidentes e atropelamentos na orla.

A ausência de fiscalização e falta de campanhas educativas favorecem a impunidade e reforça práticas predatórias — incompatíveis com o potencial turístico sustentável da cidade.

A economia dos pneus: e os bugueiros?
Se a praia não é estrada, o que será então da atividade dos bugueiros que há anos transportam turistas pelas paisagens deslumbrantes de Baía Formosa? Essa é uma pergunta legítima — e precisa ser respondida com responsabilidade social e diálogo.

Muitos desses profissionais sustentam suas famílias exclusivamente com o que arrecadam em passeios guiados. Eles conhecem o território como poucos, preservam histórias orais, indicam os melhores mirantes, e, em muitos casos, são os primeiros a chegar em áreas de difícil acesso. Ignorar sua existência ou tratá-los como “infratores” seria desumanizador.

Mas a solução não está em manter o tráfego indiscriminado de veículos na faixa de areia. A atividade turística precisa ser redesenhada com bases sustentáveis. É papel do poder público mediar essa transição, com escuta ativa, capacitação, rotas alternativas, regularização da atividade, apoio técnico e inclusão dos bugueiros nas decisões sobre o uso do território.

Já existem em outros municípios rotas ecológicas que desviam das áreas de desova, com placas informativas, guias treinados e limitação de horários. Nada disso precisa ser um impeditivo — pelo contrário, é oportunidade de transformação.

Preservar não é proibir tudo. É construir juntos o como. Afinal, os próprios bugueiros são parte da identidade cultural e turística da cidade — e podem se tornar aliados da conservação ambiental, e não inimigos.

Todas as vidas importam
Outro dia, não faz muito tempo, eu estava com Raissa na casa do Cacique, lá na comunidade do Sagi – Aldeia Trabanda, e testemunhamos uma sequência de carros 4×4 passando em alta velocidade dentro da aldeia. Um deles atropelou um cachorrinho e seguiu sem a menor preocupação. Corri para tentar socorrer o bichinho, que uivava de dor. Podia ter sido uma criança.

A cena ainda me dói — e me faz pensar que estamos naturalizando o inaceitável. Todas as vidas importam, inclusive dos cachorros e das tartarugas. E quando normalizamos a pressa e a impunidade, abrimos mão do cuidado que deve guiar qualquer convivência: entre humanos, animais e território.

O mar não é pista: o que diz a lei

O Código de Trânsito Brasileiro proíbe o tráfego de veículos sobre a faixa de areia. A Portaria Conjunta Detran/Idema nº 001/2022, específica para o Rio Grande do Norte, também reforça essa proibição. Em São Miguel do Gostoso, o MPF já obteve judicialmente a imposição de medidas semelhantes às agora cobradas em Baía Formosa. O precedente está posto.

Caso a prefeitura local não cumpra a determinação voluntariamente, o Ministério Público Federal pode ajuizar ação civil pública contra o município. Isso incluiria multa diária e responsabilização por danos ambientais.

Baía Formosa não pode mais ignorar o preço da omissão. Cuidar das tartarugas é cuidar da nossa identidade costeira, da biodiversidade, da economia baseada no turismo consciente — e da vida, em todas as suas formas.

A mobilização precisa partir de todos os setores: população, associações comunitárias, gestores públicos e operadores do turismo. O que está em jogo não é apenas o cumprimento de uma ordem judicial, mas o legado que queremos deixar.

Não há convivência possível entre a reprodução das tartarugas e pneus sobre a areia. Mas há, sim, caminhos possíveis entre preservação e trabalho digno. Que lado da história Baía Formosa vai escolher construir?